A guerra na Ucrânia inspirou nova leitura da sigla ESG: Empresas sem GÁS. Propagada pelas mídias sociais, essa tirada tem um fundo nada engraçado e imerso na mais amarga verdade. Os cortes de Putin na carne do fluxo de um combustível por ora insubstituível para a Europa abalam os alicerces de uma economia mundial sobrecarregada de dívidas desde a pandemia, taxas de juros no cosmos e indícios de recessão, pondo ainda em sinuca de bico o aquecimento de famílias no próximo inverno no hemisfério norte e a continuidade da operação de fábricas locais, como as da cadeia plástica. As sequelas são retratadas no peso da Europa no setor mundial: em choque sob a mão pesada do destino, o continente deve deter este ano 15% da demanda mundial de benzeno, 12% da de eteno e 13% no caso de propeno, calcula o portal Icis. Para cortar a veia ainda mais fundo, agravaram-se desde antes da guerra problemas irresolvidos desde a explosão da pandemia e que, na embolação com a guerra desembocam num mar de incertezas sem fim à vista. E não há saída para o mundo e a indústria plástica senão remar para a frente, pois a hipótese de volta ao passado movido a combustível fóssil em tempos de mudanças climáticas seria pedra cantada de tiro no pé do planeta, atesta nesta entrevista Paul Hodges, presidente da New Normal Consulting e requisitado analista de economia e indústria química com blog no Icis.
Quais os principais danos a curto prazo para a indústria plástica global causados pelo risco de Putin zerar ou reduzir o fluxo de gás natural russo para a Europa?
A Europa está claramente enfrentando sua pior crise desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Como avisou a cúpula das associações alemãs de empregados: “estamos encarando a maior crise pós-guerra no país e temos de ser honestos e admitir: antes de tudo, perderemos a prosperidade que desfrutamos por anos”. Dada a importância da Europa para a economia global, seus problemas afetarão a todos.
Como atenuar o baque dessa reação mundial em cadeia?
O primeiro passo é isolar os elementos-chave do problema diante de nós e então começar a focar nas possíveis respostas. Uma evidente questão crucial é que não temos de esperar pelo segundo e terceiro impactos enquanto a situação se desdobra. É como lançar uma série de pedras num lago, onde elas rapidamente começarão a gerar novas ondas quando encontram aquelas criadas por arremessos anteriores.
Passando da linguagem figurada para a vida real…
O primeiro ponto é a ameaça ao suprimento de gás e alimentos. A Rússia já transforma isso em arma estratégica ao cortar boa parte do fluxo de gás para a Europa, além de ter bloqueado as exportações ucranianas de grãos. Por sua vez, esses gestos já surtiram avarias secundárias. Os preços da amônia, por exemplo, disparam em linha com as cotações do gás e assim estão encarecendo os fertilizantes. Em decorrência, fazendeiros são forçados a aumentar seus preços ou a cortar o plantio relativo à próxima colheita. Rússia e Ucrânia respondem, em geral, por 29% das exportações globais de trigo e são fornecedores de cacife mundial de commodities como soja. Desse modo, a combinação do bloqueio do Mar Negro pela Rússia e as sanções econômicas sobre ela aplicadas pelo mundo ocidental têm potencial para abalar um vasto leque de países dependentes do suprimento alimentar dessas duas nações.
A seguir, temos o que se pode chamar de problemas auto-infligidos, causados por decisões dos bancos centrais para estimular programas de estímulo ao consumo idealizados com aquela visão de mercados ativados por compras pelo público jovem. Acontece que declinaram nas últimas duas décadas os níveis de demanda em sociedades de significativo envelhecimento populacional, caso da Europa, EUA, China e América Latina. No entanto, em vez de reconhecer o desaparecimento deste bônus demográfico, baseado no extinto consumo vibrante das baixas faixas etárias, os grandes bancos centrais despejaram em torno de US$ 70 trilhões nessas políticas de estímulo, para tentar disfarçar o déficit. Disso resultaram maciças bolhas nos mercados financeiro e imobiliário que estão começando a estourar, reflexo das taxas básicas de juros ascendentes para conter a inflação.
É a tempestade perfeita?
Para merecer essa definição é preciso acrescentar ao cenário os riscos criados pela pandemia e ainda pendentes. A China, em particular, foi afetada pela falta de vacinações efetivas, como deixa claro a queda de 5,7% no PIB de Xangai no primeiro semestre. Por sua vez, os seguidos lockdowns chineses permanecem fazendo estragos nas cadeias globais de suprimentos.
Portanto, temos de assumir que todos esses problemas estarão conosco por algum tempo. Apenas para ficar na pauta do gás na Europa, leva tempo para o estabelecimento de novas fontes de suprimento e para a construção da necessária infraestrutura. O gás natural é usado à larga como combustível por indústrias químicas europeias, razão pela qual companhias como a Basf estarem desenvolvendo planos de contingência para a possibilidade de desligamento de complexos como o de Ludwigshafen – o maior hub mundial de plantas químicas – se o pior acontecer e a Rússia fechar de vez a torneira dos gasodutos.
Concorda com analistas que enxergam a petroquímica europeia posta em contagem regressiva pela geopolítica, economia circular e dependência total do gás natural da Rússia?
Eu acho que a História pode ajudar a entender o que acontece. Em essência, presenciamos o retorno ao mundo das crises nos preços do petróleo nos anos 1980. Esse quadro também envolve a combinação tóxica da geopolítica, escassez de energia e aumento da inflação e taxas de juros. E, tal como no passado, hoje vigora a mesma recusa inicial em aceitar que precisamos encarar bem de frente os grandes problemas. Ou seja, os problemas de hoje são de maior magnitude, mas seus pontos básicos são os mesmos de 40 anos atrás. Uma diferença é que tem havido um bocado de pensamento positivo na formulação de políticas nas décadas recentes. A Alemanha, por exemplo, esperava que suas compras de gás da Rússia contribuíssem para integrar aquele país à economia global. Por seu turno, ativistas ambientalistas, tal como diversos governantes europeus, estavam felizes por fechar plantas baseadas na energia nuclear ou fóssil. Mas fizeram isso antes do suprimento de energia renovável substituto ter sido construído, o que foi particularmente estúpido. Mesmo hoje em dia, ninguém tem trabalhado para criar uma cadeia segura de suprimento energético para todos os materiais críticos que essas fábricas precisarão.
Pandemia, rupturas geopolíticas, guerra na Ucrânia, energia caríssima, quebras nas cadeias de fluxos comerciais e países desenvolvidos e sub com crises econômicas devem acelerar ou esfriar a adesão à economia circular?
Sua pergunta me lembra a famosa resposta do irlandês indagado por um viajante sobre o melhor caminho para seu destino. “Bom, eu não começaria por aí…” Mas aqui estamos e percebemos o claro risco de que as coisas possam piorar antes de melhorar. Isso também implica encarar uma escolha nítida – devemos recuar e reconstruir uma economia à base de fontes fósseis de energia? Ou tocamos em frente rumo ao mundo Net Zero e erguemos um negócio à prova do futuro baseado nas mudanças de paradigmas que já se desenvolvem à nossa volta?
O enunciado da minha pergunta já embute a resposta. É quase impossível imaginar um jeito de reimplantar uma economia global baseada na energia fóssil e, mesmo se algum meio fosse encontrado, estaríamos criando problemas para nós mesmos na esteira das mudanças climáticas. Portanto, temos pouca escolha. Precisamos de coragem para zarpar por uma nova rota, aceitando que há um bocado de solavancos no percurso. •