Devagar não se vai ao longe

Na ativa desde 2007, a recicladora Wise desde o início saltou fora do quadrado no setor, marcado pelos materiais de baixo valor agregado, ao firmar-se desde o início como maior referência nacional em poliolefinas recicladas de alto padrão, status que lhe abriu as portas dos brand owners em embalagens influentes em sustentabilidade. Sob este foco, o negócio cresceu a ponto de casar com as ambições da Braskem no campo das soluções de aura sustentável e, noves-fora, ela comprou da família Igel a participação majoritária na Wise no ano passado. Mantido sob o novo controlador como CEO da Wise, Bruno Igel continua intransigente adepto de resinas recuperadas cujo preço comprove sua qualidade superior, justificando sua mistura crescente com resinas virgens em embalagens de marcas âncoras finais. Nesta entrevista, Igel comenta os percalços e entraves para o plástico pós-consumo reciclado de melhor padrão incrementar sua escalada num país ainda no subsolo em renda, consciência ambiental e apoio do poder público à reciclagem.

Igel: reciclado exige diferenciação tributaria da resina virgem
Igel: reciclado exige diferenciação tributaria da resina virgem

É possível aliar as peculiaridades de um país como o Brasil com regras de alcance mundial ditadas pelo I Mundo para a reciclagem e reúso do plástico?
Não há dúvida sobre a extensão e pluralidade do Brasil. No entanto, também não é possível menosprezar as diferenças existentes entre os países da Europa e aquelas entre estados dos EUA, país de território ainda maior que o Brasil. É evidente que ajustes podem ser necessários, mas seja, nos locais citados mais próximos do Brasil em termos de renda, como México e África do Sul, parece vigorar uma base de regulamentação a ser seguida e que é muito parecida. São milhares os detalhes a se discutir, mas é evidente que algum sistema de responsabilização pela coleta, por parte de quem colocou a embalagem no mercado; a criação de metas objetivas para os diferentes segmentos e algum sistema de mensuração e cobrança pela geração de lixo incentivador do descarte correto são pontos em comum entre praticamente todos os países que cresceram na reciclagem. Sempre teremos particularidades, como qualquer país, mas parece que as coisas andam em ritmo muito aquém do desejado ou por falta de vontade política ou por exercício de grupos interessados.

Reciclado premium está destinado, com base no nosso perfil sócio-econômico, a ser um material tão prezado pelos ambientalistas quanto limitado em produção e demanda, por causa de sua baixa escala e preço superior?
É evidente que fazer um material reciclado com qualidade comparável ao contratipo virgem é estruturalmente mais caro. Se fosse mais barato de maneira consistente e tivesse qualidade similar, o mercado teria, naturalmente, índices enormes de reciclagem. É para corrigir essas distorções de mercado que o governo existe. Por que o reciclado é mais caro? Por que na embalagem produzida como material original não estão inclusos os gastos com coleta e separação e o custo ambiental inerente à geração de 80 milhões de t/a de resíduos sólidos urbanos no Brasil. Este gerenciamento ruim dos resíduos resulta em lixões, a problemas de saúde, contaminação de lençóis freáticos e dos mares e assim por diante. É ponto pacífico que o esquema extrair /produzir/ consumir/descartar não será sustentável para um mundo de 10 bilhões de pessoas que vivam com um mínimo de dignidade.
O que falo não é nenhuma novidade. Quando o governo exige que a gasolina seja menos poluente que 30 anos atrás ou que o diesel evolua do S-500 para o S-10, ele está trazendo um custo para mesa, fazendo uma troca. Ele propõe que o Brasil tenha uma legislação ambiental melhor, aumente o bem estar da população e reduza gastos com saúde no longo prazo em troca de um custo maior para qualquer pessoa usuária de diesel.

Mas qual a linha de ação plausível para o governo estimular o plástico reciclado de melhor qualidade?
O que é possível fazer já está comprovado por experiências internacionais. Coca-Cola, Ambev, Unilever, Natura e outras grandes companhias investiram milhões e comprovaram que embalagens de refrigerantes, águas, xampus, detergentes, perfumes e tantos outros itens podem ser feitas de material 100% reciclado. Por que as grandes empresas devem pagar uma taxa de penalidade para isso? É necessário que o governo atue em duas frentes:
Diferencie tributariamente o reciclado e o material virgem de maneira a gerar competitividade para o reciclado.
Imponha regras que obriguem o uso do reciclado por setores específicos. Nessa trilha, todas as embalagens plásticas de refrigerantes, águas, xampus ou amaciantes deveriam ter conteúdo reciclado. Gerando a demanda a indústria investe, gera o volume e competitividade. Mas o governo precisa dar a direção.

Outra questão dependente de interferência do poder público diz respeito ao crescimento do descarte incorreto de lixo plástico no Brasil. Como deter essa expansão?
A percepção de que a consciência ambiental vai levar a taxas de reciclagem maiores é a típica socialização da questão e que em nada ajuda. O problema acaba sendo de todo mundo e assim não é de ninguém. A eficiência mundial da coleta seletiva ou de resíduo sólido urbano é muito mais moldada a partir de multas, impostos, taxas e incentivos do que o contrário. Se a garrafa PET pós-consumo vale 0,50 euro nas estações de descarte com reembolso em algum lugar da Europa, provavelmente eu vou levar até elas a embalagem vazia do produto que comprei na padaria e não jogá-la no chão. Se eu tomar multas enormes por colocar meu lixo para fora no dia errado ou sem fazer separação correta, provavelmente vou evitar essas penalidades seguindo as normas. É evidente que, em anos, esses procedimentos moldam uma cultura, como demonstram os vídeos de japoneses catando lixo em estádios após eventos esportivos. Mas nada é de graça ou obtido em curto prazo.

No Brasil, o descarte incorreto converge para uma questão vista por uns como assistencialismo e filantropia e por outros como entrave à lisura fiscal e profissionalização da cadeia recicladora. Tratam-se dos estimados 800.000 catadores autônomos, responsáveis por cerca de 90% da sucata plástica recolhida. Como vê essa questão?
Filantropia é linha de ação ótima, mas não parece mudar o ponteiro nesse caso. Diversas companhias doaram somas relevantes de dinheiro ao longo dos últimos 25 anos para cooperativas associações, entre outras entidades no gênero. Não tenho à mão todos os indicadores, mas decerto algumas coisas melhoraram e momentos de extrema dificuldade foram atenuados. Mas o setor representado por este elo da cadeia recicladora não mudou estruturalmente. Eu acredito na valorização dos resíduos para contemplar esses catadores, cooperativas, associações e sucateiros com modelos de negócio dignos, rentáveis, estáveis e que lhes confiram autonomia para tomar as próprias decisões. A conta é simples: se houver preços e demanda mais estáveis ou crescentes no país, é natural que haja investimentos por parte destes entes, gestores de resíduos e até recicladores nessa direção. A cadeia de negócios só será sustentável se todos os envolvidos tiverem condições dignas de vida. Reitero como condição vital evoluir na gestão de resíduos, mas é imprescindível garantir a demanda e isso se faz com obrigatoriedade do uso de reciclados em produtos nos quais está tecnicamente comprovada a viabilidade dessa prática.

Justificativas emocionais predominam nas decisões mundiais de proibir produtos plásticos de uso único ou de abolir plásticos virgens por materiais atestados como inferiores por aferições técnicas como as Análises de Ciclo de Vida (ACVs). Por que os dados racionais não têm vez?
Entendo que a ACVs de ciclo de vida não estão refletidas em legislações e ainda embutem certa complexidade não aderente ao público geral sendo, possivelmente, também não familiar aos legisladores. A propósito, por mais que a ACV seja quase sempre positiva para o plástico, ele não demonstra necessariamente o impacto que é visto. É super difícil tratar de aquecimento global pois, além de invisível a olho nu, cada um dos seus setores colaboradores muitas vezes se sente irrelevante para o todo. A mesma percepção aparenta valer para o Brasil, uma vez que por mais que o plástico quase sempre consuma menos água, energia, seja leve e traga benefícios relevantes de transporte, utilização e custo, todos os argumentos racionais somem da consideração dos julgadores e influenciadores diante de narrativas e imagens fortes sobre a abrangência do tema da poluição plástica. •

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