Em O Exorcista, clássico dos filmes de terror, o primeiro sinal da presença do demônio numa casa é o som de um rosnado, de madrugada, vindo do porão. A quebra de qualquer paradigma também começa assim, bem de leve, quase imperceptível, e os avisos iniciais de que uma ruptura está a caminho não sensibilizam ninguém. Vem o dia em que, de súbito, estoura a avalanche, instaurando um clima de deus nos acuda entre quem se agarrava ao paradigma anterior. Estão nesse olho do furacão os descartáveis plásticos. Nos últimos anos, a rejeição ambientalista crescente a eles prenunciava a vinda de decisões extremas e ameaçadoras para sua sobrevida. Não deu outra. Proibições ao uso do produto a partir de 2021 foram ratificadas na União Europeia e, em janeiro, na China, França e no epicentro econômico da América do Sul. A lei sancionada pela prefeitura de São Paulo fará vigorar em 1 de janeiro do ano que vem, em estabelecimentos e serviços como hotéis, bares, bufês, restaurantes, aplicativos de comida e eventos, o veto na cidade ao fornecimento de copos, talheres e pratos plásticos. Outra pedra cantada: a megalópole brasileira tem influência de sobra para levar muitos municípios (e até governos estaduais) a clonarem este banimento.
Nos três níveis de governo, qualquer projeto de lei passa pela etapa de consulta pública antes da norma ser sacramentada. Pelo visto, os argumentos apresentados pelo setor plástico nesta fase não demoveram Bruno Covas, prefeito de São Paulo, do intento de varrer da cidade o fornecimento de descartáveis plásticos. “Na reta final da tramitação deste projeto de lei (99/2019), ocorreu apenas uma audiência pública, na comissão orçamentária, para análise dele e uma fila de outros sobre diferentes temas”, explica José Ricardo Roriz Coelho, presidente da Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast). Em conjunto, segue o dirigente, esses projetos já haviam atravessado uma primeira sessão extraordinária e estavam em vias de exame em segunda votação. “Foi apenas nesta ocasião que a Abiplast pôde se manifestar de público contra a aprovação do projeto, por entender que proibir descartáveis plásticos não é a solução para seu consumo e descarte correto”, sublinha Roriz. “Mas como tratava-se da análise em bloco de diversos projetos, o espaço era pouco para um debate aprofundado do tema”.
Mas em meio à tramitação da proposta do banimento, admite Roriz, tópicos como reciclagem e destinação correta dos descartáveis plásticos foram discutidos a fundo com os autores do projeto e vários vereadores. “Para eles, porém, proibir é solução de maior apelo midiático que o enfrentamento efetivo do cerne da questão, que inclui educação ambiental e ações para sanar gargalos na coleta seletiva e reciclagem”, lamenta o dirigente.
O risco de o decretado banimento paulistano proliferar pelo país afora paira no radar de Roriz. A Abiplast, por sinal, combate há tempos o alastramento de legislações para coibir o uso de produtos plásticos. “Além do questionamento jurídico, procuramos, aliados a sindicatos regionais, encaminhar propostas para adequação de projetos com vistas à implantação de soluções de cunho local em prol do consumo consciente, logística reversa e reciclagem”. A resposta apropriada às questões ambientais, assevera o presidente da entidade, passa pela mudança no paradigma de produção e consumo de produtos “e não pela proibição pontual do uso de determinados materiais, sem análise criteriosa dos impactos, e mais voltada para corresponder a modismos”.
Perda irreparável
Mário Schlickmann, diretor presidente do Grupo Copobras, nº1 em descartáveis plásticos no Brasil, concorda que faltou uma discussão técnica e abrangente sobre a matéria, abordando inclusive o descarte incorreto, no transcorrer da consulta pública do projeto do banimento legalizado pelo prefeito de São Paulo. “Vale lembrar que o nosso segmento sofre há anos com margens reduzidas pela oferta bem acima da demanda”, acrescenta Schlickmann. “A capital paulista é o maior consumidor latino-americano de descartáveis plásticos e a perda desse mercado não tem como ser compensada por outro centro nacional ou do Mercosul e desequilibrará mais ainda a relação entre produção e consumo, forçando os transformadores a um enxugamento severo dos custos”.
O presidente da Copobras julga que o veto paulistano aos descartáveis plásticos já capta a atenção de outras localidades. “Se, por descuido dos legisladores, essa lei for replicada na íntegra em outros municípios ou Estados, o impacto em nossos negócios será pesado”, ele antevê. Apesar de descartáveis constituírem apenas uma parcela do portfólio de seu grupo, Schlickmann assevera que a hipótese de uma punhado de proibições no gênero obrigaria a revisão da estrutura montada para esses produtos na Copobras. “Afinal, nosso equipamentos são concebidos para a fabricação específica desses descartáveis e, assim, não nos restariam muitas opções”.
Canetada eleitoral
Para Silano Diniz, gerente comercial da Starpack Plásticos, a lei promulgada pela prefeitura de São Paulo é um foguetório de artifício. “Para os políticos, infelizmente, é muito mais fácil e chamativo em ano de eleições dar uma canetada proibindo algo em vez de resolver mesmo o problema”, ele pondera. “Por mais que se argumente que os descartáveis plásticos são muito mais sustentáveis ao longo da cadeia de consumo, se não houver investimento a longo prazo em educação ambiental e coleta para reciclagem, fica difícil fazer as coisas certas”. Por sinal, Diniz não entende o veto estendido pela lei a descartáveis de plásticos com aditivos oxibiodegradáveis, “uma vez que canudos de resinas acrescidas desses auxiliares são permitidos”.
A médio prazo, ele enxerga, decisões como este banimento gerarão desemprego aqui e abrirão oportunidades a fornecedores do exterior. “Estamos estudando seriamente mudar de ramo de atuação e começar a importar produtos e tecnologias por ora confidenciais. Mas não estamos parados”.
Descartáveis: banimento sem cabimento
Poliestireno (PS) é o termoplástico mais dependente do mercado de descartáveis. “Em torno de 1/3 da demanda brasileira da resina é mobilizado por aplicações de uso único, correspondentes a cerca de 125.000 t/a”, calcula Marcelo Natal, diretor comercial de estirênicos da Unigel, produtora do polímero em São Paulo.
Ele contesta o tipo de apreciação do projeto que resultou, em janeiro, na lei que bane descartáveis plásticos da cidade de São Paulo a partir de 2021. “A vilanização do plástico não é a maneira ideal de se tratar o descarte incorreto de resíduos sólidos e suas consequências ambientais”, percebe o executivo. “A indústria, o poder público e a sociedade deveriam avaliar a questão de maneira sistêmica, com amplo diálogo sobre o tema”. Para Natal, o banimento não inculcará no público a cultura do consumo consciente e descarte correto. “Também pode resultar na adoção de alternativas menos sustentáveis que os descartáveis plásticos”.
Reinaldo Kröger, vice-presidente da Innova, produtora de PS em Manaus e Triunfo (RS), considera que o banimento sancionado pelo prefeito Bruno Covas passa ao largo de temas como coleta seletiva e descarte consciente. “Enxerga-se como lixo o que é matéria-prima”, interpreta o dirigente. “A resolução de questões hoje em debate, como a poluição e destinação incorreta de produtos, não acontece pela proibição do uso deles e seu banimento impactará fortemente o setor de descartáveis plásticos, grande gerador de postos de trabalho e de arrecadação de tributos. “Além do mais, a substituição por descartáveis de madeira e papel vai gerar impacto ambiental muito maior”.
Em lugar de banir descartáveis plásticos, pondera Krüger, o poder público paulistano deveria seguir a política vigente em metrópoles internacionais, abraçando campanhas educacionais e a oferta da coleta seletiva de descartáveis. “A proibição homologada pela prefeitura de São Paulo não vai ao cerne do problema do tratamento do lixo municipal, configurado no despreparo da população e da falta de coleta de descartáveis”, condena o vice-presidente.
Polipropileno (PP) também penetra em descartáveis, mas sua diversidade de usos torna sua dependência desse segmento bem menor que a de PS. Única produtora de PP no país, a Braskem preferiu não responder as perguntas de Plásticos em Revista sobre a coibitiva lei paulistana. Em, lugar disso, a empresa enviou um comunicado institucional no qual se opõe à proibição do uso de descartáveis plásticos e enfatiza suas ações de reciclagem de copos pós-consumo de PP.
Barbas de molho
Nivaldo Davoli, gerente comercial da Rioplastic, atribui em especial à desinformação do governo municipal a proibição do fornecimento de descartáveis plásticos na capital paulista a partir de 2021. No mix da Rioplastic, ele considera, o impacto dessa lei será amortecido. “A linha de descartáveis é secundária em nossa operação de embalagens rígidas, mais dirigidas a indústrias como a química e alimentícia”, ele explica. “Lógico que a área de descartáveis se ressentirá, mas, devido à nossa abrangência nacional, o baque causado por este veto será pequeno”. Para compensar eventuais perdas, inclusive em virtude das possíveis réplicas da norma paulistana por outros municípios, Davoli revela que a Rioplastic planeja fortalecer mais o segmento de embalagens industriais injetadas e termoformadas. “Já trabalhamos também no desenvolvimento de descartáveis mais sustentáveis, caso esta lei de proibição, uma tendência mundial, ganhe outras regiões do país” .
Peso no bolso
Valmor Zapelini, diretor presidente da Plazapel, acha que a câmara municipal de São Paulo desconsiderou, na fase de consulta pública do fatídico projeto de lei, as vantagens do descarte correto, reciclagem e reutilização de materiais plásticos. “Além do benefício ambiental obtido com o reúso de uma matéria-prima nobre, menos dispendiosa de energia e água que a produção de uma resina virgem, a reciclagem gera emprego e riqueza para a cadeia envolvida”. Na mesma trilha, ele frisa não haver alternativa ao custo/benefício e características técnicas do plástico em produtos de uso único, caso dos descartáveis injetados e termoformados. “A substituição imposta por um banimento consolidado encarecerá os produtos alternativos, com impacto negativo sobre a demanda de um mercado de descartáveis já super ofertado e ultra disputado”.
O dirigente reitera que seu parque fabril dedicado a descartáveis plásticos é vocacionado apenas para esta aplicação. “Caso a proibição do produto persista e ganhe corpo no país, não temos saída a não ser encerrar as atividades”, pressupõe Zapelini.
Supermercados retraídos
Para agravar a apreensão de Zapelini, sobram na mídia relatos de varejistas que vendem refeições, bebidas e doces na capital paulista que começaram a abolir o uso de descartáveis plásticos bem antes do projeto de lei passar ao papel. A mesma rejeição ambientalista ao produto está sendo demonstrada, em caráter individual, por estabelecimentos comerciais de outros grandes centros do país. Em paralelo, tal como acontece no I Mundo, a venda de descartáveis plásticos em supermercados no país também entra em sinuca de bico. “O lixo gerado pela humanidade vem aumentando de forma progressiva, em especial nos grandes centros urbanos, como São Paulo, tornando a coleta seletiva e o armazenamento um enorme desafio”, constata Marcio Milan, superintendente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras). “A substituição de materiais descartáveis por outros menos poluentes é uma tendência mundial. Assim como a eliminação das sacolas plásticas, que começou na capital paulista e tem se espalhado para outros estados, acredito que, aos poucos, os descartáveis em geral irão desaparecer, na medida em que avançar o uso da tecnologia e se unirem todos os elos da cadeia: governo, indústria, comércio e consumidor”.
O apoio à sustentabilidade enraizou-se no canal de autosserviço. “Muitas delas mantém ações que vão além da eliminação de plásticos, envolvendo postos de entrega voluntária, troca de lâmpadas tradicionais por led ou a modificação de sistemas de refrigeração”, expõe Milan, salientando a participação da Abras na orientação e desenvolvimento dessas decisões dos filiados em linha com a sustentabilidade. “O processo é gradativo, mas inevitável”, julga o dirigente. O maior desafio é a conscientização de todos os elos da cadeia de que este é o único caminho para um mundo melhor, mais sustentável, com menos poluição ambiental”.
Super Bowl: cartão vermelho para copos plásticos
Com o objetivo de eliminar passo a passo os plásticos descartáveis das dependências do Hard Rock Stadium, a fornecedora de catering Centerplate, a cerveja Bud Light e a fabricante de embalagens metálicas Ball introduziram copos de alumínio de uso único no Super Bowl, a final do campeonato norte-americano de rúgbi disputada em 2 de fevereiro naquele estádio em Miami. Conforme foi divulgado, os copos de alumínio foram distribuídos nos setores de hospitalidade e ajudarão a extirpar mais de meio milhão de contratipos de plástico anuais da cadeia de suprimentos do Hard Rock Stadium.
Tendência inevitável
Ações espontâneas e individuais de supermercadistas em apoio à sustentabilidade, caso de abandonar a venda de descartáveis plásticos, podem não ser bem sucedidas, pondera Ricardo Ribeiro Alves, consultor com pós-doutorado em marketing ambiental e referência nacional na literatura sobre este tema e sustentabilidade. “Por exemplo, um supermercado abole a venda de descartáveis plásticas e a oferta de sacolas plásticas a clientes”, ele coloca. “A tendência automática do consumidor é ir a outro supermercado que ofereça estes produtos. Mas se a legislação exigir que todos os supermercadistas não vendam descartáveis plásticos nem ofereçam sacolas do material, aí não há saída para o consumidor”.
Para Alves, embora o consumidor brasileiro em regra apoie o discurso da sustentabilidade, “na prática ela é um aspecto secundário ou terciário para a maioria da população. Ela busca a conveniência em primeiro lugar”. Assim, se no canal do autosserviço a venda de descartáveis e a oferta de sacolas plásticas forem impedidas por lei, o público terá que se adaptar ao padrão instituído pela norma aos supermercadistas. “E o brasileiro se adapta com rapidez, mas precisa de um ‘choque’ para sair da inércia”, complementa o analista. “Em nossa cultura medidas como a regulamentação são importantes para mudar hábitos de consumo. É diferente de culturas cujos povos já têm consciência ambiental formada enquanto nós, brasileiros, ainda temos muito a aprender em termos de sustentabilidade”.
Alves pondera que a indústria deve se empenhar para que o plástico não seja crucificado e entendido como único vilão ambiental. Mas ela precisa se adequar à pressão ambientalista global, com a inevitável chegada ao Brasil de medidas como as crescentes proibições a descartáveis e embalagens plásticas de uso único, ele deixa claro. Se a indústria utiliza plásticos de alto impacto ambiental negativo, assinala Alves, é hora do dever de casa: buscar um material menos prejudicial à natureza, assim como é preciso fortalecer a logística reversa, de modo que o material descartado possa (via reciclagem) ser reutilizado pelo próprio setor, com efeitos colaterais positivos do ângulo ambiental, social, econômico, trabalhista e educacional. “Assim, a indústria do plástico conseguirá melhorar sua imagem perante a sociedade, passando da visão corriqueira de inimigo à de parceiro na minimização dos problemas ambientais”, assegura o especialista em marketing verde. “Ou seja, é preciso que a indústria do plástico se antecipe às possíveis restrições.” •