O plástico se redescobre

Os números empolgam, mas explicam menos do que as reticências e interrogações à sua volta. O Brasil entrou em 2023 com perto de 1,115 milhão de toneladas de plásticos reciclados no ano passado (cerca de + 10% sobre 2021), provenientes de um consumo aparente de 7,2 milhões de toneladas (cerca de + 0,5%) e produção local de 7,7 milhões (cerca de + 0,9%), apontam estimativas preliminares e extraoficiais da Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast). Devido ao Brasil, sem dúvida, a América Latina embolsou a vice-liderança em plástico reciclado gerado, atrás apenas da América do Norte, no rasante mundial fatiado pela entidade World Wild Life (WWF).
Embora sejam de encher os olhos, os indicadores do Brasil também refletem peculiaridades que, por linhas tortas, influem na magnitude dos resultados, mas acentuam também lacunas estruturais do país. Os volumes de plástico reciclado brasileiro são compatíveis com um país populoso e continental, sem comparação com a extensão geográfica dos 27 Estados-membros da União Europeia, a bússola mundial em mentalidade circular e combate às mudanças climáticas. Na mesma trilha, o Brasil destoa do bloco com pífio nível educacional, renda magra, infraestrutura irrisória, insegurança jurídica e demência fiscal. Fala por si, por exemplo, a querela em torno dos cerca de 800.000 catadores autônomos que, por ganhos mínimos com a venda da sucata recolhida nas ruas dos centros urbanos, respondem pela esmagadora maioria do oscilante e ineficaz suprimento de plástico pós-consumo para reciclagem. Reina a controvérsia se este modelo de coleta deve ser mantido sob enfoque solidário de política assistencial ou no modelo profissionalizado e integrado à cadeia setorial, em linha com a ótica empresarial. Nos moldes correntes, o trabalho braçal dos catadores é informal e mal remunerado. Em regra, um europeu ou norte-americano de raiz relutaria em exercê-lo por achar a atividade humilhante, como ilustra a aversão de ingleses às vagas de caminhoneiros para transportar bens de consumo do continente ao Reino Unido transtornado em 2021 pelo Brexit e pandemia. Resumo da ópera: a inserção de catadores despreparados e miseráveis numa economia circular adulta ainda não entrou em pauta no Brasil.
O xis da questão transcende as coisas nossas. No plano geral, como diz o historiador Yuval Harari, problemas globais exigem soluções globais. A introdução das fontes renováveis de energia, ele exemplifica, talvez ressoe melhor em determinados países que em outros. China, Japão e Coréia do Sul são inescapáveis importadores de petróleo e gás natural e abririam champanhe se essa dependência acabasse. Já as economias da Rússia, Irã e Arábia Saudita, contrapõe o pensador, ligadas por cordão umbilical às exportações de combustíveis fósseis, pifariam com a troca deles por energia solar e eólica.
Seja na ONU, Davos, parlamentos, grupos de nações, simpósios, fóruns, ONGs e demais arautos do desenvolvimento sustentável, ainda está por surgir o luminar com a bala de prata para gregos e troianos no vespeiro das fontes de energia suja e limpa.
Tem mais, prossegue Harari. A pressão ambiental provavelmente vai piorar, ele nota, à medida que a prosperidade de países emergentes como o Brasil evolua e sua população pobre ganhe acesso a bens como os de consumo básico e giro rápido até então fora do seu alcance, tipo alimentos como carne, produtos de cuidados pessoais ou de limpeza doméstica. E junto com essa melhora de vida vem, para ira dos ecoxiitas, o consumo intensificado dos plásticos virgens nas embalagens. E quem vai convencer o povo desinformado e sofrido a reduzir, com dinheiro no bolso, seu uso de plásticos pela causa ecológica?
Noves fora, enquanto a reciclagem abre caminho, impulsionada pelo embarque de corações e mentes na economia circular, o consumo de resina virgem também aumenta. A petroquímica mundial anda por este tablado ao estilo “uma no cravo e outra na ferradura”. Mesmo repudiados por ativistas pró fontes renováveis, produtores de poliolefinas adentram em seu terceiro ciclo seguido de engorda da capacidade mundial. Ou seja, mais plantas estrearão a partir de 2026 nos EUA e Ásia. Ao mesmo tempo, petroquímicas investem a mil na nascente reciclagem química e, com menos ímpeto, na madura reciclagem mecânica.
Paparicado pelos pregadores da circularidade, o reaproveitamento do resíduo plástico não fica de pé sem investimentos na estrutura da reciclagem. Quanto mais materiais recicláveis forem coletados, separados e limpos, mais oportunidades terão a indústria e brand owners para proporcionar a polímeros pós-consumo uma segunda ou até terceira vida. Daí também porque a viabilidade econômica da reciclagem química, complementado a atuação da mecânica, deverá reduzir a quantidade de rejeitos e ampliar a diversidade de moléculas restauradas para reúso. Custos demarcam a linha divisória para a destinação de qualquer tipo de resíduos, ensina a experiência alemã. Em razão da reciclagem cara e complicada em demasia, um volume significativo de rejeitos plásticos é hoje incinerado no país suprassumo da tecnologia do material.
Em particular de cinco anos para cá, a reciclagem química entrou para os sinônimos de inovação em favor da sustentabilidade do plástico. Em boa parte, ele ficou mal visto por suas virtudes. A busca por uma ótima performance econômica e funcional gerou um efeito bumerangue: produtos transformados show, mas de reciclagem inviável, um requisito inexistente quando foram criados. Em reverência à economia circular e para restaurar a reputação de um material de predicados inatingíveis por seus concorrentes, a indústria plástica hoje corre atrás de desenvolvimentos cujos pontos de partida incluem a sustentabilidade. Exemplos já notórios na praça mundial: filmes industriais (shrink e stretch) e embalagens flexíveis e rígidas contendo resina recuperada, laminados resseláveis ou de reciclagem facilitada pela estrutura monomaterial, acenados a conteúdos menos dependentes de barreira a gases e umidade, como cereais, snacks, detergentes, farinha de trigo e misturas secas. No mesmo compartimento, alojam-se poliolefinas quimicamente recicladas grau alimentício já em cena na Europa em laminados para barras de chocolate e em potes termoformados de sorvete.
Esporeada por brand owners e legisladores, a revolução circular em andamento decreta que resíduos de artefatos plásticos de uso único não podem mais ser considerados lixo, mas bens por demais valiosos para jazer no aterro ou sofrer descarte incorreto. Daí reações da cadeia do material como investir em sistemas de reciclagem, incentivar a inovação e expandir na sociedade o impacto desses avanços por meio de parcerias público-privadas. Trata-se, é fato, de ferramenta de visões e efeitos controversos no Brasil, mas o consenso global atesta que, sem a participação a sério de governos, a sustentabilidade não voa só com a asa da colaboração voluntária, individual e fragmentada das empresas. Tal como na reciclagem, este processo depende da compatibilidade de seus ingredientes. •

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