Saindo da estaca zero
Não é preciso aguardar pela cruza oficial de algarismos com algoritmos para se deduzir que, em linha com o ocorrido com a resina virgem, a pandemia derrubou o volume de plástico reciclado no Brasil em 2020, sustando por um momento a suada expansão do material para segundo uso, a tiracolo dos rapapés e mesuras da sociedade à sustentabilidade. A prova mais recente da resiliência da reciclagem, cuja volta aos trilhos é esperada após a vacinação em massa, reluz no levantamento de 2019 empreendido pelo Plano de Incentivo à Cadeia do Plástico (PicPlast), em cena desde 2016 na roupagem de um bem casado da Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast) com a Braskem, único produtor de poliolefinas e o maior de PVC no país.
Em 2019, aponta a pesquisa empreendida pela consultoria MaxiQuim, um efetivo estimado em 695 indústrias em funcionamento ocupou em 62% a capacidade nominal de reciclagem de plástico no Brasil, projetada em 1.848.000 toneladas. No mesmo período, foram geradas no país 3,5 milhões de toneladas de resíduos plásticos ou 2% a mais que em 2018. No ano seguinte, a indústria recicladora brasileira mobilizou 1,3 milhão de toneladas de sucata plástica, proveniente em 52,5% do pós-consumo doméstico; 19,5% do pós-consumo não doméstico e 28% de aparas industriais. A partir desses resíduos, foram produzidas 838.000 de resinas mecanicamente recicladas em 2019 versus 757.000 em 2018. Amarradas as pontas, o levantamento do PicPlast conclui que 24% do plástico pós-consumo gerado no país foi reciclado em 2019 ou 8,6% acima do volume de um ano antes, quando o índice de resina recuperada ficou em 22,8%. Na partilha das 838.000 toneladas recicladas em 2019, PET respondeu por 42%; polietileno de alta densidade (PEAD), 18%; polietilenos de baixa densidade e linear (PEBD e PEBDL),17%; polipropileno (PP) por 16% e outros polímeros pegam os 8% restantes.
Arregaçando as mangas
Em linha com a média mundial, os índices brasileiros de reciclagem de plástico ainda são insatisfatórios perante a quantidade de resíduos descartados nos aterros e lixões. Por sinal, o resíduo plástico é considerado material de baixo valor e, no plano geral, o consumidor brasileiro, apesar de décadas de sensibilização ambiental, ainda não se sente estimulado a separar esse refugo de forma adequada e levá-lo a cooperativas ou pontos de entrega. Após as etapas de separação, moagem, lavagem e extrusão, o plástico pós-consumo reciclado commodity (PCR) é vendido, situam analistas, a preços até 40% inferiores ao da resina virgem. No consenso do setor, em regra esses preços de venda não cobrem os custos da produção, o que contribui, por tabela, para explicar a significativa incidência de informalidade e a prevalência na praça de material reciclado de baixo valor agregado e qualidade a desejar, proporcionado por um perfil de indústrias dominado por obsoletas empresas de menor porte.
Nos últimos anos, porém, o céu começa a desanuviar no Brasil para o PCR de valor agregado e padrão de qualidade superiores. No âmbito das poliolefinas, a mudança tem sido capitaneada por recicladores mais capitalizados e, a montante da cadeia plástica, pela petroquímica Braskem, esta última desenvolvendo diferenciados grades de PP e PE pós-consumo, além de arregaçar as mangas numa operação de coleta seletiva e triagem de resíduos de embalagens de poliolefinas e na montagem de uma unidade-modelo de reciclagem mecânica dessas mesmas resinas, ambas em São Paulo. Em outra frente de seu comprometimento com a sustentabilidade, a Braskem projeta adicionar 60.000 toneladas em 2022 à sua capacidade de 200.000 t/a para produzir polietileno derivado de fonte renovável, o etanol da cana de açúcar, bioplástico sem similar mundial.
Os bons fluidos da sustentabilidade também agraciam o compartimento de PET reciclado grau alimentício. Falam por si o aumento da procura pelo material em embalagens sopradas, como garrafas de água mineral e refrigerantes, e termoformadas, caso de potes e demais recipientes transparentes para confeitaria e itens como legumes e frutas in natura. Única produtora local de PET integrada no intermediário-chave ácido tereftálico purificado (PTA), a Indorama contribuiu para este clima de agora vai ao adquirir em 2020 o controle de uma recicladora do poliéster grau alimentício em Minas Gerais.
Coleta insuficiente
Um sinal da magnitude do plástico na reciclagem de resíduos sólidos urbanos (RSU) é a produção brasileira de embalagens em 2019. Projetada em R$ 80,2 bilhões, ela revela a liderança do plástico entre os materiais utilizados, com fatia calculada em 41%.
Cálculos da Associação Brasileira de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) situam em 79 milhões de toneladas (379 kg per capita) a geração de RSU em 2019 contra 67 milhões (348 kg per capita) em 2010. Por seu turno, o resíduo plástico responderia por cerca de 10% do lixo doméstico nacional, sendo que 90% dessa participação ainda não é coletada. Ou seja, não chega à indústria recicladora. Sob a ótica do copo meio cheio, o quadro insinua o potencial para a recuperação de polímeros se agigantar no país.
Retomando o fio das planilhas da Abrelpe, a coleta de RSU saltou de 59 milhões de toneladas em 2010 para 72,7 milhões nove anos depois e, quanto à destinação final desses resíduos, 43 milhões de toneladas foram despejadas em aterros sanitários em 2019 e 28 milhões acabaram em lixões e aterros controlados. Na boca do caixa, o Brasil aplicou R$17.650 bilhões na coleta de RSU em 2010 e R$25.401 bilhões em 2019, fixa a Abrelpe, assinalando que a carência de recursos é crônica.
Meio salário mínimo
O levantamento do PicPlast sobre o cenário da reciclagem em 2019 constata que o resíduo plástico chega aos recicladores das seguintes origens: indústrias plásticas, 28%; sucateiros, 26%; beneficiadores, 17%; cooperativas, 12%; empresas de gestão de resíduos, 8%; catadores, 4%; fontes geradoras, 3% e aterros, 2%. Entre todas as alternativas, os catadores, apesar de sua participação discreta, dispõem de maior visibilidade para a opinião pública. Para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o exército de catadores ronda 600.000 pessoas, chegando a um milhão na medição do Movimento Nacional de Catadores de Recicláveis, que também situa a remuneração de muitos deles em meio salário mínimo. Analistas estimam que 5% dos catadores estejam vinculados a cooperativas e associações, enquanto a maioria é formada por trabalhadores autônomos e informais que vendem sua coleta diária a depósitos de sucata. Um indicador dos baixos ganhos da coleta: beneficiado com o auxílio emergencial em 2020, um número expressivo de catadores deixou momentaneamente de trabalhar, influindo assim na escassez de resíduo plástico que então atormentava os recicladores, decorrência também do tombo na produção de transformados entre fevereiro e maio, auge da quarentena.
Após 11 anos de vigência da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), apenas um em cada cinco dos 5.570 municípios brasileiros conta com coleta seletiva, a maioria deles no Sul/Sudeste e, em geral, este sistema de recolhimento não cobre todos os bairros atestavam em 2020 fontes como o Senado. Daí porque os catadores se firmaram como os maiores supridores de sucata reciclável em todo o país, embora no âmbito dos resíduos plásticos seu percentual de coleta seja pálido. De outro ângulo, levantamento anual da Abrelpe sustenta que 4.070 municípios dispunham de algum tipo de coleta seletiva em 2019, mas ela não abrangia a totalidade da área urbana em questão. A entidade constata que iniciativas de coleta seletiva eram notadas em 56,6% dos municípios em 2010 e mais de 73% das cidades em 2019, mas tais ações ainda são ínfimas e a escassez de separação dos resíduos se reflete na sobrecarga do sistema de destinação final. Em decorrência, amarra as pontas a Abrelpe, os índices de reciclagem de resíduos descartados de todos os materiais se mantêm abaixo de 4% na média nacional, escancarando a ausência de um mercado estruturado para absorvê-los além da permanência de um poço sem fundo tributário e do acanhamento da logística reversa.
Sucateiro intermediário
No plano geral, recicladores no Brasil não atuam na moagem, lavagem e secagem do resíduo plástico. Tal distanciamento é explicado por complexidades como a seleção apropriada de polímeros, tratamento de efluentes e a dependência de licenciamento ambiental. Em suma, o foco dos recicladores é a compra e beneficiamento dos flakes com masters e aditivos para depois submetê-los à extrusão e granulação.
As etapas de moagem, lavagem e secagem trazem à tona a categoria do sucateiro atravessador, de alta incidência de informalidade e vice-líder no fornecimento de resíduo plástico para reciclagem, segundo a aferição do PicPlast. Pela praxe no ramo, um depósito de lixo compra do catador o plástico pós-consumo que ele recolheu e o vende a um sucateiro. Ele transfere o material adquirido a empresas de moagem, lavagem e secagem e, a seguir, o revende às indústrias de reciclagem.
Triagem automatizada
Em 2019, indica a varredura do PicPlast, as perdas no processo de reciclagem de plástico totalizaram 135.000 toneladas, saldo 15% inferior ao de 2018. O prejuízo é atribuído à contaminação da sucata por descuido dos consumidores no descarte, justificativa que resvala para a incipiente conscientização ambiental da população. Em contrapartida, toma corpo aos poucos em centrais de triagem de resíduos para reciclagem a substituição da separação manual pela seleção e identificação bem mais precisas dos polímeros por sensores ópticos, munidos de luz de infravermelho próximo (NIR).
Apesar das lacunas estruturais, vigor da informalidade, suprimento inconstante de resíduos de qualidade e da envergadura hoje acanhada da coleta seletiva, a previsão é de tempo bom no decorrer do período para reciclagem de PCR no Brasil. Os sinais que pululam nessa direção alinham, por exemplo, o ingresso de petroquímicas na produção e venda de grades de reciclados de alto valor agregado; fabricantes formadores de opinião em produtos finais cobrando a utilização de teores crescentes de PCR de qualidade nas embalagens; recordes mundiais na reciclagem de embalagens de defensivos; a escalada gradativa da automação em recicladoras e, por fim, a nova geração de consumidores, com maneiras de pensar e agir que impõem à indústria do plástico vestir a camisa da economia circular.
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