A imprensa internacional chamou de Momento Katrina do governo brasileiro a enchente devastadora do Rio Grande do Sul. É uma associação com o furacão que destruiu, em 2005, a cidade americana de New Orleans e botou abaixo a imagem do presidente George Bush. À parte centenas de mortos, desabrigo de milhões de residentes e a infraestrutura em cacos, a enchente iniciada em 29 de abril deixa na indústria gaúcha o pior trauma sofrido pelo setor plástico brasileiro com um nocaute climático. Pela régua da Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast), o Rio Grande do Sul detém 40% da capacidade brasileira de PP e PE e a única planta integrada de estireno/PS do país. Seus 1.428 transformadores (aferição de 2023) venderam R$ 8.2 bilhões em 2023 e, do início da tempestade até14 de maio último, já acumulavam perdas da ordem de R$ 680 milhões, estimou a entidade para a consultoria Icis. A entrevista a seguir detalha esta descida ao inferno ciceroneada por Edilson Luiz Deitos, diretor da Zandei Plásticos, vice-presidente do Sindicato das Indústrias de Material Plástico no Estado do Rio Grande do Sul (Sinplast) e seu representante na Abiplast.
Quais as áreas do estado que contêm os núcleos expressivos de transformadores mais afetados em suas atividades pela enchente?
Até o momento, 47 empresas associadas ao Sinplast e situadas na Grande Porto Alegre e região do Vale do Taquari foram impactadas pela enchente. Por enquanto, não temos como dimensionar o percentual de queda nas atividades, pois muitos empresários sequer tiveram acesso às fábricas, em função das restrições da Defesa Civil, e muitos não responderam ao nosso questionário ou nem retornarem as ligações.
Nas regiões do nordeste gaúcho, Vale dos Vinhedos e Planalto as empresas até o momento operam dentro da normalidade para abastecer indústrias de outros Estados ou do próprio Rio Grande do Sul, caso de indústrias não atingidas pela catástrofe. Mas tudo isso depende de a logística disponível viabilizar o atendimento. Afinal, muitas transformadoras locais não foram atingidas, porém não possuem acesso ou seus clientes estão inoperantes.
Junto com a seca recorde em Manaus no ano passado, esta enchente no Rio Grande do Sul comprova que o Brasil entrou definitivamente para o mapa dos extremos climáticos. Como este fato deve alterar a recomposição de estoques pela transformação gaúcha nos períodos mais chuvosos no Estado daqui por diante?
Estamos vivenciando cenários diferentes nos últimos anos, seja com pandemias ou eventos climáticos. Para isso, precisamos de regras claras para enfrentar essas situações de crise. Falo de projetos de lei específicos para epidemias e outras calamidades. Em casos de declaração de calamidade pública, as normas seriam automaticamente acionadas, o que nos livraria de desgastes com fiscalização tributária, por exemplo. Também precisamos negociar regras excepcionais em favor da manutenção de empregos, regulamentação da demanda de energia elétrica, prorrogação de financiamentos e novas linhas de crédito para a reconstrução. Por sinal, ando empenhado em impulsionar a criação de um projeto de lei para a reconstrução de infraestrutura em eventos climáticos. Através dessa norma, as empresas poderiam abater um percentual do IPI, PIS e Cofins, recursos encaminhados à constituição de um fundo para reconstruir pontes e estradas com maior celeridade. Em setembro do ano passado, uma enchente no Estado resultou na queda de várias pontes e, somadas àquelas destruídas no evento deste ano, o número dessas obras que necessitamos recuperar já passa de 40. Este fundo seria gerido em parceria por entidades civis e a Secretaria estadual dos Transportes. Trata-se de um projeto de lei benéfico a todos os Estados abalados por circunstâncias excepcionais.
Com relação aos estoques da transformação, tal como ocorreu no período da covid e da seca em Manaus e acontece agora nos alagamentos que abatem o Rio Grande do Sul, digo que quem possui estoques hoje é rei. Estoque passa de gasto a investimento nessas horas.
A possibilidade de futuras enchentes similares em áreas mais castigadas pelo desastre atual pode motivar a transferência de plantas transformadoras para locais mais seguros dentro do Estado ou na vizinha Santa Catarina?
A atratividade para outros Estados possuidores de melhores benefícios tributários está presente no dia a dia das empresas gaúchas, chegando ao extremo dos benefícios federais proporcionados pela Zona Franca. É sabido que esses incentivos irão perdurar por 10 anos com a reforma tributária e, no caso do polo de Manaus, se estenderão até 2073. Transpondo para o Rio Grande do Sul, além da competitividade insuficiente em benefícios fiscais e da distância dos grandes centros de consumo, agora vem esta catástrofe climática. O Sinplast obteve algumas conquistas junto à Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul dentro das atuais normas do Conselho Nacional de Política Fazendária, para reduzir a vantagem tributária de produtos transformados vindos de outros Estados. Mas no plano geral e devido ao impacto dessa última enchente, algumas empresas atingidas estão com planos de se realocarem aqui no Estado.
A enchente no Rio Grande do Sul paralisou o polo de Triunfo, baixando drasticamente a oferta doméstica de PP, PE, PS e estireno. Como se sustentam os pedidos da petroquímica por aumentos nas tarifas de importação tendo por base um polo de resinas situado em local sujeito a extremos climáticos, capazes de interromper seu funcionamento e comprometer o suprimento para os transformadores de todo o país?
A Abiplast já encaminhou para a Secretaria de Comércio Exterior correspondência solicitando a reconsideração de sua análise desses pedidos, em função da atual situação em que um aumento de tarifas de importação é descabido.
Manda a lógica que a recuperação da infraestrutura do Rio Grande do Sul e do seu mercado interno não acontecerá de imediato. Diante disso, quais saídas enxerga para as indústrias transformadoras gaúchas, focadas em especial na demanda doméstica e de Santa Catarina e Paraná, rodarem com ocupação minimante aceitável, diante das avarias da malha rodoviária estadual e da dependência por ora maior de resinas importadas?
A parada do polo de Triunfo, por medidas de segurança e falta de insumos, ainda não comprometeu o suprimento das empresas que ainda possuem ligação com Santa Catarina. A Braskem (nota: não respondeu ao pedido de entrevista, negada também pela produtora de PS Innova) as está abastecendo via fábricas de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Tão logo baixem as águas, a Braskem conta com estoques em Triunfo para atender a demanda local. Além disso, o porto de Rio Grande estava operando até a data de hoje (14/05) e as vias de acesso a ele, embora mais distantes, estão viabilizando o fornecimento de material importado. As cargas dessas matérias- primas que estão em trânsito dependem do aceite do operador logístico de mudança de porto se o de Rio Grande estiver operante. Mas há a alternativa dos portos de Santa Catarina; na soma das entradas é o estado de maior volume de importações de matérias-primas.
A entrada do Rio Grande do Sul para o mapa dos extremos climáticos tende ou não a levar investidores na transformação a repensarem planos de montar plantas no Estado, preferindo locais menos sujeitos a catástrofes e mais incentivados?
Todo país ou estado que passa por dificuldades retoma a normalidade mais forte; os maiores exemplos são o Japão e a reconstrução do próprio Rio Grande do Sul após a enchente de em 1941. Agora temos que replanejar e reerguer as cidades rodovias e pontes arrasadas. Mas o potencial de consumo e a qualidade da mão de obra continuam de pé por aqui.
Na história do Rio Grande do Sul, não existe momento similar a este. Por isso, não existe uma solução pronta para o caos; precisamos da ação conjunta e a criatividade de todos. Na visão da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs), cumpre dividir a estratégia em 3 Rs. O primeiro é o de Resgate e refere-se a doações e formas de colaborar. Governo e sociedade civil vêm desempenhando esta etapa com maestria. Agora é a vez do R da Retomada, com o apelo da união do Brasil e valorização dos manufaturados gaúchos, para estimular a retomada dos investimentos, empregos e geração de impostos. Depois virá o R da Reconstrução, envolvendo forças políticas e sociedade civil organizada na recuperação da estrutura e ações prevencionistas contra enchentes.
A reação à enchente comprovou a importância do plástico, contestada por seus críticos, em momentos de calamidade pública?
Na mobilização em torno das doações de água mineral e cestas básicas, é nítida a preponderância do plástico. Fica ainda mais claro, nessas horas, não ter cabimento proibir um material tão relevante, caso de produtos descartáveis. Aproveito para agradecer a Abiplast, sindicatos estaduais da transformação e a Federação das Indústrias de Santa Catarina pela mobilização que gerou o envio de copos, quentinhas e recursos em geral para podermos atender as demandas de embalagens plásticas para a população do nosso Estado.