A depender da fonte, perambulam pelas ruas do Brasil entre 600.000 e 800.000 catadores de resíduos pós-consumo, a maioria autônoma, vivendo na informalidade e tirando por mês uma miséria. No entanto, estão acontecendo sem alarde movimentos da iniciativa privada que indicam que esse quadro constrangedor pode perfeitamente ser revogado, se houver vontade, preparo e foco. Entre eles desponta, feito ilha de excelência, um sistema de logística reversa de embalagens em cena desde 2006: o programa Dê a Mão para o Futuro (DAMF), administrado pela Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec) e que também conta com a participação da Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães e Bolos Industrializados (Abimapi) e Associação Brasileira das Indústrias de Produtos de Higiene, Limpeza e Saneantes de Uso Médico e Uso Profissional (Abipla), totalizando 191 empresas filiadas. É óbvia a ponte entre o DAMF e a cadeia plástica, pois poliolefinas e PET respondem pelo grosso das embalagens comercializadas pelas cooperativas envolvidas.
A razão de ser do DAMF é o fortalecimento das cooperativas participantes e adequação de sua infraestrutura para alcançar protagonismo no mercado via venda conjunta de materiais. Para tanto, o programa investe no nivelamento da estrutura e produção das cooperativas de catadores, para que possam padronizar o tratamento e ganhar escala a ponto de vender seus resíduos a recicladores, sem intermediários no caminho.
Os resultados do DAM em 2020 são de encher os olhos. O programa monitora 147 cooperativas em 20 Estados, totalizando um efetivo de 4.967 catadores que recolheu 121.642 toneladas de embalagens. 40% dos catadores receberam por mês de R$ 1.100 a R$ 1800 e 12% acima de R$ 1.800. Na retaguarda, o DAMF investiu no período R$ 14.177.504,41 em equipamentos, capacitação das cooperativas, adequação da infraestrutura, divulgação da coleta seletiva, software de gestão, pagamento por tonelada e auxílio emergencial. Nesta entrevista, Rose Hernandes, diretora de meio ambiente da Abihpec e coordenadora do DAMF abre uma panorâmica da bem sucedida linha de ação do programa.
Como o DAMF monitora os volumes de resíduos trabalhados pelas cooperativas filiadas?
O programa desenvolveu plataforma (software) que permite o gerenciamento de dados relacionados à recuperação e à comercialização de materiais recicláveis para fins de destinação final ambientalmente adequada, independentemente de a comercialização dos resíduos ser realizada por comércio atacadista ou indústria recicladora. Afinal, o pressuposto do DAMF é atender à Política Nacional de Resíduos Sólidos, prestigiando sua estruturação mediante cooperação e apoio a cooperativas de catadores de materiais recicláveis.
Dos 4.967 catadores atrelados ao DAMF em 2020, 52% recebem acima de um salário-mínimo. Como o programa consegue proporcionar uma renda mensal tão acima do montante irrisório recebido pelo grosso do efetivo nacional dos catadores de recicláveis?
As cooperativas menos estruturadas e que entraram na fase 1 (estruturante) do programa recebem mais investimentos, para que possam atingir condições básicas em equipamentos, infraestrutura, capacidade administrativa e recebimento de materiais provenientes de coleta seletiva. Em decorrência dessa etapa, as cooperativas desenvolvem progressivamente operações mais profissionalizadas e, dessa forma, aumentam a capacidade produtiva e melhoram suas estratégias de mercado. No entanto, vale observar que o cenário de gestão de resíduos no Brasil é influenciado por inúmeras externalidades, como a volatilidade do mercado de recicláveis, desafios geográficos com a concentração de plantas de reciclagem no Sul/ Sudeste (que privilegiam cooperativas nestas regiões pela proximidade e facilidade de logística), eficiências de coleta seletiva e até o significativo impacto da pandemia no desempenho das cooperativas. A gestão de resíduos caracteriza-se pela ação de diferentes atores ao longo da cadeia e é preciso um esforço coordenado de todos os stakeholders (partes interessadas) para evoluir nos objetivos comuns.
Por quais motivos, o Damf, em 14 anos de ativa, não atraiu até hoje as representações dos materiais das embalagens consumidas pela Abihpec, Abipla e Abimapi?
Nunca foi objetivo do programa atrair representações de materiais de embalagens. Ele foi concebido para viabilizar a recuperação de materiais para a reciclagem e aproveitamento em novos ciclos produtivos. Além disso, sempre teve um viés fundamentalmente técnico-operacional voltado à estruturação de organizações de catadores e à comercialização dos materiais recolhidos por essas organizações para reciclagem.
21% das 147 cooperativas ligadas ao DAMF ainda não aderiram à regularização fiscal para comercializar os resíduos pós-consumo recicláveis. Por quais motivos e quais as formas adotadas pelo programa para convencê-las a deixar o comércio marginal?
No plano geral, as cooperativas que aderem ao DAMF e não emitem notas fiscais encontram-se com documentações administrativas e contábeis atrasadas, além de não possuírem conhecimento sobre tributação, dada a natureza de seu trabalho. Aliás, profissionais que tenham bom conhecimento na área não são fáceis de encontrar, pois falamos aqui não apenas de tributação sobre o mercado de recicláveis, mas sobre tributação para cooperativas de catadores. A grande maioria das cooperativas integrantes da mencionada parcela de 21% e que ainda não emite notas fiscais enquadra-se na fase 1 (estruturante) do programa. Portanto, estão sendo estruturadas nos eixos administrativo-financeiro, produtivo e comercial.
Para acelerar este processo, estamos desde o final do ano passado em uma força tarefa junto a estas cooperativas. Ela conta com acompanhamento de consultoria especializada para regularizar documentações e instruir sobre tributações conforme cada Unidade Federativa, dada a existência de diretrizes tributárias particulares a cada Estado, como ICMS e possíveis isenções. Ao final de dois anos desse acompanhamento, período de duração dessa fase estruturante do DAMF, as cooperativas que insistirem em não formalizar sua comercialização/emissão de notas fiscais não terão seus contratos renovados.
Quais as iniciativas do programa que têm motivado as cooperativas a não se curvar a compradores que não aceitam a formalidade ou ofertam um valor menor pelos resíduos?
Sobre a informalidade promovida pelos compradores, percebemos que há um novo fator no mercado que faz com que os intermediários não aceitem comprar os materiais com emissão de notas fiscais pelas cooperativas. Com as plataformas de emissão de créditos de reciclagem aceitando as notas fiscais de operadores logísticos nível 2 (intermediários), estes observaram uma nova fonte de receita. Portanto, se a fonte de seu material já estiver registrada por massa recuperada proveniente de cooperativas integrantes de outros programas de logística reversa (e essa massa é rastreada com a emissão de notas fiscais), esses operadores ficam impossibilitados de registrar tal volume de recicláveis nas plataformas de crédito. Por este motivo, intermediários vêm se negando a comprar materiais das cooperativas rastreáveis via emissão de notas fiscais. Este cenário pode resultar em retrocesso de todo este esforço para formalização de uma cadeia.
No tocante aos custos do programa, qual o significado do quesito Pagamento Por Tonelada (PPT)?
O PPT acontece na Fase 3 do DAMF e abrange cooperativas egressas das fase estruturante e de investimentos realizados com exigências de cumprimento de metas de produtividade. Nesta terceira etapa, o programa contrata as cooperativas e realiza trimestralmente o repasse financeiro a elas, conforme a massa recuperada informada por tonelada. Essa forma de trabalho e realização do repasse é prevista em contrato entre o programa e a cooperativa. Junto a este acordo, desenvolvemos em parceria com as cooperativas um planejamento para uso responsável do recurso recebido. Além do mais e visando ainda zelar pelo maquinário doado nas fases anteriores, o DAMF exige que a cooperativa mantenha uma reserva de, no mínimo, 15% desses valores para manutenção desses equipamentos e aquisição de novos. A propósito, as cooperativas têm utilizado o recurso financeiro repassado para pagamento de INSS dos cooperados, incremento da capacidade produtiva mediante aquisição de equipamentos, reformas dos galpões e contratação de consultoria para auxiliar na gestão do empreendimento e nas estratégias de avanço no mercado.
À parte o auxílio emergencial de R$ 600 distribuído pelo governo, o DAMF contemplou os 4.967 catadores participantes com suporte financeiro (R$ 2.730 milhões) por alguns meses no ano passado. O programa considerou o subsídio oficial insuficiente e por isso compareceu com benefício individual também de R$ 600?
O auxílio disponibilizado pelo DAMF ocorreu no período em que o governo estava estruturando seu programa de auxílio emergencial, portanto não procede a relação aventada na pergunta. Este repasse foi realizado pelo programa porque constatamos em nosso gerenciamento que quase todas as cooperativas tiveram operações inteira ou parcialmente paralisadas nos primeiros meses da pandemia em 2020.
A pandemia prossegue em 2021 e o governo retornou à distribuição do auxílio emergencial com valores, prazo de vigência número de beneficiários menores. Diante disso, o DAMF retoma o pagamento do seu suporte financeiro este ano?
No acompanhamento do período atual, observamos que a grande maioria das cooperativas mantém sua operação normal, pois já ajustou as operações aos protocolos exigidos para contenção da pandemia e consequente autorização de funcionamento. Tais ajustes, por sinal, foram efetuados com suporte das assessorias técnicas contratadas pelo DAMF para monitoramento constante das cooperativas em diferentes dimensões. Com o mercado também com valores de materiais recicláveis em alta, não identificamos, até o momento, a necessidade de novo repasse. •