Tem tudo a ver: combina sustentabilidade e mobilidade urbana com saúde e bem estar. Mas a ideia continua dura de sair pedalando. Qual é o problema com a Muzzicycle, a bicicleta com estrutura de plástico reciclado? A resposta vem do criador do artefato, o uruguaio Juan Muzzi. “Ecologia é demagogia”, ele dispara, ao contar a história sobre como lhe bateu a epifania relativa à confecção do quadro da Muzzicycle, cuja produção ainda carece de escala suficiente para baratear o preço final de R$ 1.100 da bike.
A história de Muzzi no ramo do plástico começou em 1976, quando abriu uma fábrica para produzir uma pomba de brinquedo. Desde então, ele está à frente da Imaplast, cujo forte é ferramentaria. A empresa também se especializou na injeção de tampas e lacres, todos patenteados, garante o industrial. Em 1998, ano em que Muzzi produzia patinetes, atividade abandonada devido à invasão de artigos chineses, veio a ideia para o quadro de plástico. “Visitei uma fábrica de bicicletas e vi que a produção era muito difícil. Havia mais de cem pessoas trabalhando na solda de inúmeros componentes. Considerei um processo arcaico”, ele lembra. A veia ecológica saltou com o plano de utilizar plástico recuperado, em princípio PET, na composição da resina.
Até acertar o molde do quadro foram seis tentativas e igual número de fracassos. “É muito difícil fazer algo sem similar algum no mundo”, considera o empresário. Em 2010, quando Muzzi chegou ao modelo que queria, acabou o dinheiro e o projeto ficou dois anos parados. “Até aquele momento, investimos cerca de R$ 4 milhões”, ele calcula. Faltava ainda o financiamento para a confecção do molde definitivo e o inventor tomou uma porta na cara do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). “Eles me disseram que se a ideia fosse realmente boa, já teria sido colocada em prática pelos norte-americanos ou chineses”, conta. Retomando o fio, Muzzi entrou então em contato com o Banco de la República Oriental del Uruguay, que acreditou no invento e emprestou US$ 1,3 milhão complementares para o início da produção. Depois disso, o mais trabalhoso foi conseguir a patente do molde definitivo, mas hoje Muzzi exibe orgulhoso os certificados obtidos nos Estados Unidos e Holanda, válidos em todo o mundo.
Toda a cadeia de fabricação do quadro é terceirizada, desde o processamento de matéria-prima recuperada, extrusão dos compostos e injeção da peça, esta realizada em uma máquina de 1800 toneladas de força de fechamento. Questionado sobre a possibilidade de trazer essas etapas para dentro de casa, Muzzi avisa que é inviável economicamente devido ao baixo volume. O molde consegue gerar perto de 9000 quadros por mês, em ciclos de três a quatro minutos, em média, dependendo do material processado. O artefato é feito de blendas que levam PET, reciclado ou não, poliamida (PA), acrilonitrila butadieno estireno (ABS) ou polipropileno (PP), conforme a necessidade do cliente. Embora a Muzzicycle possa ser adquirida na loja virtual da empresa, não há muitas unidades em estoque e os lotes maiores são sempre feitos por encomenda.
Um projeto quente está sendo tocado a quatro mãos com a fonte de água mineral Rocha Branca, cujos galões de plástico, quando chegam ao fim da vida útil, são reprocessados e transformados em Muzzicycles. Muzzi também toca uma parceria com uma empresa de cosméticos que envia refugos de embalagens de PET para ser transformadas em quadros de bicicleta. “Estamos agora negociando com o Parque do Ibirapuera (SP). Eles querem reaproveitar as garrafas descartadas pelo seus 1,5 milhão de visitantes mensais”, Muzzi prospecta. Uma iniciativa similar já foi realizada na cidade de Indaiatuba, interior paulista.
O industrial, aliás, só não desistiu da produção local por conta do volume exportado para países como Honduras, Colômbia, Chile, México e Itália, e pela impulsão dada pela Borealis, parceira no fornecimento de compostos de PP. “Eles apostaram no projeto e desenvolveram uma fórmula exclusiva para a Muzzicycle”, comemora o inventor. Por ora, a produção das bicicletas não se paga e a empresa depende de suas outras atividades para continuar na ativa.
Muzzi não prospecta novos investimentos enquanto o financiamento atual não for pago, mas está adaptando seu galpão no Bairro do Limão, na zona norte de São Paulo, para montagem de 2000 unidades por mês. A maior parte dos componentes da bicicleta, como pneu, aro, selim e guidão, são comprados no Brasil, ao passo que partes como corrente e engrenagem traseira são trazidas da China. O câmbio é da grife japonesa Shimano, referência mundial nesse tipo de produto. Pronta, a Muzzicycle pesa 12 kg, enquanto o quadro sozinho tem 5 kg aproximadamente, de acordo com o composto aplicado.
Se as recomendações de conservação forem seguidas, Muzzi dá garantia vitalícia ao quadro da bicicleta. O produto é testado pelo laboratório Falcão Bauer, parte da Rede Brasileira de Laboratórios de Ensaios (RBLE) do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). “A aprovação final é nossa. Conduzimos testes internamente e só depois de passar por eles a bicicleta pode ir para a rua”, sinaliza Muzzi.
As sacadas proliferam na cabeça do empresário de 65 anos feito escândalos em estatais. Ele já começa a desenvolver moldes para fazer também de plástico o para-lama e o suporte para garrafa da Muzzicycle. A empresa, da mesma forma, testa materiais de fonte renovável para incorporação nas fórmulas dos compostos. “Em algum momento, o petróleo deixará de ser usado e talvez nossos bisnetos vejam ações mais concretas nesse sentido”. A capacidade de Muzzi de criar desabrochou quando ele tinha 14 anos e fazia entalhes de madeira e os vendia no povoado uruguaio de La Paz. Suas criações de plástico, que incluem a mola mania, febre nos anos 1980, tomam forma no ateliê onde Muzzi pendura quadros pintados por ele mesmo, entre prateleiras atulhadas de livros de arte sobre Dalí, Gaudí, Matisse e Miró. Inspiração não falta. •
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