Se alguém ainda duvida das lascas na reputação do plástico perante a opinião pública e do tamanho do fosso na comunicação entre a indústria do material e a sociedade, um gesto de consumidores finais em São Paulo, encabeçado por ativistas de exemplar formação superior, diz volumes sobre o tamanho da encrenca. Em 3 de agosto último, a jornalista Carolina Tarrio, a arquiteta Nina Furukawa e a médica e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Thais Mauad, baixaram na fábrica do laticínio paulista Fazenda Bela Vista para uma visita indigesta. Entregaram 365 garrafas vazias (equivalentes a um ano de consumo na casa de Carolina) do leite longa vida da marca Fazenda e uma carta (ver à pág. 44) assinada por 157 consumidores criticando a escolha da embalagem descartável de polietileno de alta densidade e seu impacto ambiental. Nesta entrevista exclusiva, Thais Mauad racionaliza o protesto, viralizado na mídia. As respostas dadas trazem à luz bons pontos por onde o setor plástico poderia começar enfim a se mexer para tapar aquele fosso.
PR – Qual a motivação para devolver ao laticínio as garrafas vazias e entregar a carta com 157 assinaturas de apoio ao gesto?
Thais Mauad – Esta ação foi gerada pelo descontentamento de um grupo de pessoas pela grande quantidade de plástico descartável gerada pelo consumo diário de leite. Em primeiro lugar, gostaríamos de voltar a ter embalagens retornáveis de vidro. As garrafas plásticas de leite são um exemplo da grande quantidade de plástico descartado diariamente por várias famílias. Precisamos reduzir o consumo mundial de plástico,principalmente o descartável. Estima-se o consumo mundial em 320 milhões t/a de plástico, sendo 40% desse volume a parcela descartável.Uma quantidade significativa disso se perde no meio ambiente. Previsões alertam que, em 2025, os oceanos acumularão 250 milhões de toneladas de plásticos,causando danos incalculáveis á vida marinha. Estudos mostram que estamos ingerindo e inalando microplásticos, com potenciais danos importantes à saúde. Além disso, a confecção de plásticos usa recursos não renováveis, como o petróleo, emitindo gases de efeito estufa na atmosfera. O uso de aditivos químicos no plástico é prejudicial à saúde humana. Por fim, sabemos que somente 3% do lixo das cidades paulistas é efetivamente reciclado. Uma enorme quantidade de plástico está contaminando os solos e águas no Brasil. Segundo a entidade Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre) 87% dos municípios brasileiros não têm coleta seletiva.
PR – Qual a razão para discriminar especificamente o plástico, entre todas as matérias-primas disponíveis, através da devolução da garrafa vazia de leite?
Thais Mauad – Pelas razões que já dei. Além do mais, o vidro é 100% reciclável. Ao contrário do plástico, que tem um down scale, vidro na reciclagem vira vidro da mesma qualidade. Gostaríamos de diminuir a cultura do descartável e ter, como anos atrás, leite em garrafas de vidro, de preferência retornáveis. As indústrias de cerveja e refrigerante já vendem seus porodutos em garrafas de vidro.
PR – Segundo declaração sua publicada, o maior problema não é o recolhimento do material (garrafas de leite) descartado, mas o seu correto encaminhamento para a reciclagem. Como assim?
Thais Mauad – A garrafa plástica de leite estimula a cultura do descartável, o que deveríamos rever urgentemente. A falta de coleta seletiva e – em consequência – a reciclagem são um problema adicional. Enfatizamos que, antes de reciclar, deveríamos reduzir a quantidade de descartáveis.
PR – Há mais de duas décadas, grandes empresas, mídia, escolas e governo procuram catequisar pedagogicamente a população sobre as virtudes do descarte incorreto. Mas entra ano sai ano, a sucata entope os bueiros e emporcalha as praias após as festas de reveillon. Por que esse trabalho de conscientização ambiental até hoje não inibiu o descarte incorreto de embalagens pós-consumo?
Thais Mauad – É necessário mais educação ambiental; não concordo que haja trabalho ambiental consistente. É preciso desestimular o consumo de descartáveis. Nossa sociedade de consumo é estimulada ao uso desses produtos descartáveis, muitos deles de plástico. A indústria precisa repensar embalagens menos agressivas ambientalmente e é necessário o cumprimento da lei da logística reversa por empresas e poder público. Segundo consta, o Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados no Estado de São Paulo (Sindileite) não assinou o documento do grupo Coalizão (já assinado por 22 representações industriais) relativo ao acordo de logística reversa integrante da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).
PR – As boas intenções ambientais colidem com a falência das contas públicas. A maioria das prefeituras não tem caixa nem know how para fechar os lixões e substituí-los por aterros sanitários, como determina a PNRS. Qual a sua sugestão para este problema ser equacionado?
Thais Mauad – Rebato a pergunta: o que a indústria do plástico está fazendo para gerar embalagens mais adequadas ambientalmente? Por que não usamos plásticos biodegradáveis (e não oxidegradáveis) ? O que os grandes geradores estão fazendo para recolher as embalagens de plástico que fornecem, evitando assim a chegada aos lixões? O que fazer para diminuir a cultura do descartável?
PR – Após o ato da entrega das garrafas vazias e da sua repercussão na mídia, vocês foram procuradas por alguma representação do setor plástico?
Thais Mauad – Após a ação, fomos contatadas apenas pelo laticínio Fazenda Boa Vista. Por e-mail, disse que iria abrir um ponto de coleta de garrafas na própria empresa e que estava “estudando junto com o Sindileite” sua adequação à PNRS. Uma resposta, a nosso ver, insatisfatória e muito vaga, considerando que a PNRS já tem sete anos e que nós estamos, como consumidores, pedindo para a empresa tomar providência há 10 anos. O que desejamos é que as empresas implementem um sistema de embalagens retornáveis, preferencialmente utilizando vidro, material menos danoso ao meio ambiente. Desejamos que parem imediatamente de utilizar embalagens que não são recicláveis e que acabam se acumulando em cooperativas e lixões. E que, enquanto o sistema de embalagens retornáveis não for implementado, a indústria se responsabilize pela coleta, reciclagem e destinação correta do plástico e das outras embalagens que colocam no mercado.•