Regras viscerais determinadas pela Lei Federal 14.202 de 2020, referente ao Novo Marco Regulatório do Saneamento, foram torpedeadas por dois decretos assinados pelo presidente Lula em 5 de abril. Entre as mudanças introduzidas de chofre, consta a permissão para estatais continuarem a operar serviços de saneamento básico sem licitação, por meio dos chamados contratos de programa repudiados pela lei homologada três anos atrás. Os novos decretos já suscitaram protestos e contestações na Justiça por membros do Poder Legislativo e representações da iniciativa privada. De todo modo, dois propósitos basilares do marco regulatório, instituir segurança jurídica e um ambiente de negócios favorável à universalização do saneamento básico no país até 2033, foram por água abaixo por cortesia do viés estatizante do governo. Conforme manda a lógica, será uma proeza restaurar a confiança do empresariado para investir num campo minado pela incerteza regulatória.
Com essa mexida a fundo numa legislação que mal entrou em campo, o governo fortaleceu a manutenção das obras de infraestrutura como mercado no rodapé da partilha do consumo de PVC no Brasil. No constrangedor pano de fundo, conforme projeções do Instituto Trata Brasil, 35 milhões de pessoas permanecem sem água tratada, quase 100 milhões seguem sem acesso à coleta de esgoto e, pelo andar da revisão pró estatizante do marco pelo governo, 2033 torna-se um prazo duvidoso para a meta de universalização dos serviços ser cumprida.
Os dois textos presidenciais pegam no contrapé boa parte das indústrias de tubos e conexões de PVC. Até então, extasiados com o marco regulatório, grandes transformadores da área volta e meia alardeavam na mídia a estreia em produtos e soluções para instalações destinadas a redes de água e esgoto. No embalo, Almir Cotias, diretor do negócio de vinílicos da Braskem, salientava em artigo publicado em 2020 por Plásticos em Revista, que a lei então homologada viabilizaria a aplicação de mais de R$ 700 bilhões em investimentos privados. No mesmo ano, Nilton Valentim, gerente comercial vinculado ao negócio de vinílicos, aguçava a alegria detalhando em entrevista que PVC é o material que responde por 60% das redes de adução e por mais de 75% das redes de distribuição de água e de esgotamento/afastamento.
Em meio à euforia na qual a cadeia vinílica levitava, o candidato do PT às eleições presidenciais sinalizava desconforto com as disposições do tão comemorado marco regulatório. O contraste entre essa aprovação geral da lei e a contrariedade de Lula foi a tônica da visionária entrevista abaixo, dada por Sergio Vale, renomado economista chefe da consultoria MB Associados, e publicada há quase um ano, em maio de 2022, por Plásticos em Revista. Recordar é viver.
Lula vem marcando sua candidatura com um discurso estatizante e avesso à presença da iniciativa privada em áreas que considera de cunho exclusivo do poder público. Se ele vencer a eleição presidencial e dada a crônica insegurança jurídica do país, como avalia a possibilidade de seu governo revisar o novo marco regulatório do saneamento?
O grande risco de um futuro governo Lula é não ter tido o aprendizado dos erros que foram cometidos no passado. Um deles foi atrasar o processo de concessões e privatizações na falsa crença de que o Estado faria melhor esses investimentos. Na verdade, o governo Lula no passado deixou de investir na regulação. As agências reguladoras criadas no governo FHC foram continuamente destituídas de poder e os ministérios começaram a ter muito mais força regulatória do que as agências, culminando muitas vezes em falta crônica de diretores por falta de indicação do governante de ocasião. Investimento público é importante, mas precisa ser focado no que de fato o governo tem que estar presente, que é educação, saúde e o social. No caso da educação, o investimento em ciência básica é o melhor que o governo poderia fazer. O ideal seria que um futuro governo Lula resgatasse o papel das agências reguladoras e mantivesse as concessões e privatizações. Mas certamente nem um nem outro desses procedimentos vão ocorrer.
A experiência dos governos de Lula e Dilma demonstra empenho e competência no combate ao constrangedor déficit nacional do saneamento básico? E mais: o poder público pode viabilizar a universalização dos serviços de saneamento básico, prescindindo da iniciativa privada?
O saneamento não teve a devida atenção histórica, mas isso não começou nos governos petistas. O Brasil tem déficit crônico no setor e o novo marco regulatório é promessa de investimento importantes no futuro. Mas, novamente, é necessário, mais do que nunca, em um setor sem competição no local em que a rede de saneamento está instalada, que a regulação ocorra com a mesma eficiência para impedir abusos privados. Historicamente, o setor público não conseguiu entregar resultados satisfatórios no setor e seria interessante essa combinação de investimento privados, mas com regulação bem feita. Esse é o desafio.
Quais seriam as principais consequências para o Brasil decorrentes de uma eventual reestruturação do marco regulatório do saneamento com o intuito de consolidar e ampliar a participação estatal?
O impacto seria muito ruim, pois, além de voltar atrás em uma política que já começou a funcionar, daria muito insegurança jurídica não só a esses investidores, mas a outros setores também. A dúvida que ficaria é se o governo não mudaria a regulação de outros setores como pode fazer no saneamento. Causaria impacto geral nos investimentos e atrapalharia a recuperação da economia. Investimento público, aqui nesse caso, não é o caminho e o PT parece continuar entendendo o contrário. Quem paga a conta é a própria população, infelizmente.