Guiar com som à toda e de janela aberta é proibido. Sabe de alguém multado por essa infração? Pois a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) periga embicar nessa mesma direção das leis saudadas como baluartes da modernidade da pátria. Só que não pegam na prática.
Aprovada sob chuva de confetes verdes em 2010, a PNRS impunha o fechamento dos lixões no país até 2 de agosto de 2014. A sucata irreciclável e inaproveitável deveria rumar para aterros sanitários. Uma beleza de norma, tão enaltecida quanto descumprida pelas municipalidades. Veio então o Projeto de Lei 2289/2015, homologado pelo Senado e até o momento em tramitação na Câmara dos Deputados. Em seu enunciado camarada ele estica até 31 de julho de 2018 o prazo para capitais e regiões acatarem a determinação da PNRS. Para municípios com mais de 100.000 habitantes, foi estabelecido o limite de 31 de julho de 2019, enquanto para aqueles com população de 50.000 a 100.000 moradores o novo prazo de adequação vai até 31 de julho de 2020 e, para cidades com menos de 50.000 viventes, a data máxima delimitada pelo projeto de lei é 31 de julho de 2021.
Prefeituras quebradas
Esse rito de passagem da jurisprudência para a vida real é uma pedreira que sequer passou pela cabeça dos legisladores, pelo visto obcecados em aclimatar um idealismo ambiental escandinavo a um certo país do lado de baixo do Equador. Aos fatos: levantamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) revela que quase a metade dos prefeitos deixou como legado aos sucessores débitos pendentes, também conhecidos como “restos a pagar”, ao apagar das luzes de seus mandatos em 2016.Tem mais: a receita aferida no ano passado com impostos, taxas e transferências de 4.376 municípios recuou aos patamares de 2011. Para salgar ainda mais a ferida, nos 12 meses findos em outubro passado, os municípios totalizaram déficit de R$ 1,7 bilhão. Por fim, no período entre 2016 e a primeira metade de janeiro de 2017, um contingente de 62 prefeituras decretaram estado de calamidade financeira, apurou a CNM, mas não falta quem suponha ser bem maior esse número, dado caixa a seco generalizado entre os cerca de 5.600 municípios no país.
Acuados pela sangria desatada nas finanças, os municípios, tal como a União e Estados, se viram agora como podem para enfiar os gastos no orçamento em camisa de força. Deixam assim entreaberta uma sobrevida aos lixões, para além dos já revisados prazos para seu fechamento exigido pela PNRS. “A situação calamitosa dos municípios contribui para a redução dos já parcos investimentos em questões que,apesar da grande relevância, não possuem tanta visibilidade. Desse modo, o caixa deficitário das prefeituras conspira para inviabilizar o cronograma do fechamento dos lixões”, vaticina o advogado Marcelo Buzaglo Dantas, à frente de um dos maiores escritórios de Direito Ambiental do país e autor de livros-chave na área, como Ação Civil Pública e Meio Ambiente, Direito Ambiental na Atualidade e Direito Ambiental de Conflitos. “No Brasil, meio ambiente ainda não dá votos – ao contrário, costuma tirá-los, razão pela qual os governantes em geral não lhe dão a devida atenção, preferindo investir em áreas menos importantes, mas de maior projeção perante a opinião pública”.
Dever de todos?
Para Buzaglo Dantas, os seguidos adiamentos do fim dos lixões contribuem para desmoralizar a lei da PNRS. “Passados mais de seis anos de sua edição, ela ainda não pegou e são poucas as iniciativas para dar-lhe cumprimento efetivo”, lamenta o jurista. Esse tropeço do poder público também põe em xeque a validade dos esforços da iniciativa privada em prol da sustentabilidade. “O artigo 225 da Constituição Federal estabelece que a proteção ambiental é dever de todos – poder público e coletividade”, observa Buzaglo Dantas. “Não basta o empresariado privado investir na área se as administrações públicas não fizerem sua parte e, na verdade, deveriam ser o primeiro elemento a agir, para dar o exemplo”. Incentivos fiscais a práticas de sustentabilidade, pondera o advogado, são a contribuição mínima a se esperar do governo. “Na crise atual, eles estão muito longe da realidade”. Buzaglo Dantas discorda da suposição, baseada no histórico de incompetência e irresponsabilidade da administração oficial, de que a PNRS foi concebida sem considerar o nível real da gestão pública brasileira. “Nos últimos tempos, constatamos haver muito dinheiro para ser aplicado nas áreas mais sensíveis para a população, mas boa parte da verba acaba nos bolsos de políticos mal intencionados, seus apadrinhados e empresários inescrupulosos”, argumenta. “A lei da PNRS procurou nivelar por alto os municípios e o problema é que os gestores estão nivelados por muito baixo e, salvo exceções, mais preocupados com interesses próprios do que em preservar os direitos básicos da coletividade”.
Cômputo do BNDES, repassa o jurista, estima a necessidade em torno de R$2,5 bilhões em aterros sanitários de portes diversos para atender a demanda nacional de tratamento de resíduos sólidos urbanos entre 2015 e 2019. “Na partilha dos recursos, caberiam R$1.056, 68 bi ao Nordeste; R$ 652,31 mi ao Sudeste; R$342,14 mi ao Centro-Oeste; R$247,50 mi ao Norte e R$ 188,40 mi ao Sul”. Os prejuízos advindos da protelação do fechamento dos lixões degringolam a economia e qualidade de vida. “No plano ambiental, degradam a paisagem, contaminam as águas e solo, suprimem a vegetação e ameaçam a fauna terrestre por atraírem espécies exóticas”, sumariza o advogado. Do ponto de vista social, prossegue, os lixões trazem a reboque os catadores sem perspectiva de renda e ali encontram uma fonte de subsistência, muitas vezes alimentando-se de resíduos. “Quanto aos senões econômicos”, completa o advogado, os lixões acumulam insumos descartados de modo irregular, passíveis de reinserção em diversas cadeias produtivas, reduzindo custos de produção e de obtenção de matérias-primas”.
Desperdício bilionário
José Ricardo Roriz Coelho, presidente da Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast), recorre a um estudo de 2012 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) como régua das perdas acarretadas pela permanência dos lixões. “O mapeamento estimou então em R$ 8 bilhões o desperdício de materiais que poderiam ser reciclados”, informa, assinando embaixo do diagnóstico de Buzaglo Dantas quanto às consequentes degradações ambiental e social.
Tal como o jurista, Roriz não digere o argumento de que a PNRS foi concebida sem atentar para o notório nível de gestão pública do país”. Minha leitura é de que a PNRS resultou de uma demanda da sociedade, que altera o modelo de negócio e a postura de diversos atores da coletividade”, ele delimita. “Por conta dessa mudança, trata-se de legislação complexa e dependente de esforços e reposicionamentos das partes envolvidas”. Aliás, lembra o dirigente, a PNRS traz à baila o conceito de responsabilidade compartilhada.
“Todos os agentes participantes do ciclo de vida dos produtos estão incumbidos de minimizar o volume gerado de resíduos sólidos e rejeitos”, assinala. “A iniciativa privada tem feito sua parte, mas o sucesso desse compromisso depende da ação de todos os elos. A pressão social tende a chegar à administração pública, instando-a a acelerar seus movimentos para atender aos anseios da população”.
Carência de conhecimentos
Roriz não diz às claras se as finanças em pandarecos nos municípios forçarão mais um atraso no cronograma do projeto de lei, chancelado pelo Senado e em fogo brando na Câmara dos Deputados, para o encerramento dos lixões. Pela PNRS, expõe o dirigente, municípios dotados de plano de gestão integrada de resíduos sólidos terão acesso a recursos de fontes como a União para atividades ligadas à limpeza urbana. “Mas desde 2010, apenas 33% das cidades apresentaram esse plano”, aponta. “Isso demonstra problemas além da esfera financeira. Uma grande parcela dos 5.570 municípios carece de conhecimentos para essa incumbência e, somada a discussão entre atores sociais afetados pela mudança do sistema de gestão de resíduos, vê-se por que o tempo de adequação do poder público a essa conjuntura perde para a velocidade do setor privado”.
Apesar das evidências, Roriz rechaça a hipótese de fissuras na credibilidade da lei da PNRS. “Virou um caminho sem volta, a temática ambiental é demanda social e a iniciativa privada já apresentou um acordo setorial em apoio à PNRS”. Ele aproveita a deixa para encaixar uma reverência do setor plástico ao desenvolvimento sustentável. “O número de recicladoras de resinas mais que dobrou na última década”. Para o presidente da Abiplast, a empresa que não se adaptar a esse cenário será penalizada com perda de competitividade em prol de fornecedores de produtos ecoeficientes e praticantes da logística reversa. “Por isso, acho pouco provável que a PNRS entre para o rol das leis que não pegam”, defende. “Pois mais que uma lei, refere-se a um novo modelo de consumo”. A questão é se e quando essa ficha cairá para as prefeituras ao deus dará no lixão dos restos a pagar. •