Nos últimos anos, a indústria brasileira tem sofrido com o emagrecimento de sua participação no PIB. De 2015 para cá, o recuo ganhou tons de tragédia com um exército de companhias inadimplentes, entre maiores e menores e tradicionais e novatas, sem outra saída da recessão a não ser pedir recuperação judicial. Transformadoras de plásticos pululam nas listagens de empresas endividadas em busca do anteparo da Justiça para tentarem dar a volta por cima. O diabo, já se disse, está nos detalhes, e os requisitos e tramitação de um processo de recuperação judicial guardam cada vez menos semelhanças com o falecido recurso da concordata. Essas diferenças e as mudanças que acarretam são apontadas na entrevista a seguir por Marcio Duarte Novaes, sócio do escritório paulistano NHS – Novaes Hajar Santos Advogados. Atuante há 13 anos em Direito Empresarial, Novaes é professor universitário e especializado em Direito e Relações do Trabalho.
PR – Quais as diferenças entre o passado e presente na esfera judicial para empresas em dificuldades para honrar compromissos e porque ficou mais seletivo o deferimento dos pedidos de recuperação judicial?
Novaes – Por conta da necessidade de atualização do sistema legal, foi publicada em 9 de fevereiro de 2005 a Lei 11.101/2005.Ela passou a regular a chamada recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Apesar de sua complexidade, ela trouxe diretrizes consistentes e muito mais transparentes para viabilizar a reestruturação de empresas em crise financeira. Possibilitou a elas a apresentação de um plano de recuperação ao Poder Judiciário. A recuperação judicial substituiu a concordata, esta restrita ao ato do credor de perdoar, renunciar ou liberar a empresa devedora da dívida (tecnicamente, trata-se da remissão da dívida) ou a simples concessão de dilatação de prazos para pagamento aos credores. Já a lei de recuperação judicial, prevê a forma pela qual a empresa devedora terá de se reorganizar com base num plano de reestruturação fundamentado em medidas de ordem financeira, jurídica, econômica e comercial.
PR – Qual o foco específico delas?
Novaes – Tratam-se de propostas para demonstrar e conferir efetivas chances para a superação da crise. Na concordata, os credores eram meros espectadores que deveriam contentar-se com o perdão e/ou adiamento de prazos impostos pela legislação. Por sua vez, a recuperação judicial preserva de forma mais efetiva a participação dos credores no procedimento judicial. Com as informações que prestarem em juízo, eles serão um dos responsáveis por aceitar ou rejeitar o plano de recuperação escolhido pelo devedor. Caso seja aprovado, os credores assumirão sua fiscalização e cumprimento.
PR – Quais pontos destaca entre as exigências para as partes introduzidas pela lei de recuperação judicial?
Novaes – Alguns exemplos: prazo mínimo de dois anos para o devedor exercer a atividade empresarial; não ter sido declarada falência da empresa e, se foi, ter sido declarada extinta por sentença transitada em julgado. O devedor também não pode ter sido condenado ou contar, na condição de administrador ou sócio controlador, com alguém sentenciado por crimes falimentares.
PR – Segundo analistas como o Serasa Experian, a maioria das empresas que pleiteiam recuperação judicial já está inapelavelmente fadada à falência. Por que os devedores em regra não percebem a tempo essa contagem regressiva para a quebra?
Novaes – Utilizando como parâmetro a pesquisa do Serasa, foram protocolados de janeiro a abril 571 pedidos de recuperação judicial contra 289 no mesmo período em 2015. Do total de 571, uma fatia de 327 relacionava-se a micros e pequenas (faturamento anual de até R$ 4 milhões); 33 às médias (receita entre R$ 4 milhões e R$ 50 milhões) e 23 às maiores companhias (faturamento acima de R$ 50 milhões). Por vezes, os sócios controladores não conseguem identificar o momento para utilizar o recurso da recuperação, até mesmo por conta do viés emocional provocado pelo acúmulo da inadimplência de pagamentos e o reconhecimento de que as futuras entradas financeiras não cobrirão o montante das dívidas. Um dos sinais dados para se ter esta percepção está na própria lei, pois consta que a insolvência empresarial poderá ser presumida nos casos de impontualidade na satisfação de suas dívidas de forma coletiva. Vale lembrar que o inadimplente pode ter ou vir a ter o valor do débito, mas não realiza o pagamento, enquanto o insolvente não paga porque não tem caixa. A inadimplência refere-se a um ou outro débito e a insolvência a todas as dívidas, sem distinção. Infelizmente, a maioria dos processos de recuperação arrasta-se por anos nos tribunais ou desemboca em em falência. É o resultado de planos de recuperação mal elaborados, sem fundamentos financeiros.
PR – O que acha da visão do mercado sobre a empresa em recuperação judicial?
Novaes – Por uma questão cultural, ele em regra vê com desconfiança o futuro da empresa em recuperação judicial; muitos credores suspendem de todo o suprimento de bens e serviços. Quanto ao fornecimento de créditos bancários, não há uma política clara do setor para empresas em recuperação, restando-lhes assim a busca de alternativas paralelas, leia-se bancos e instituições de segunda linha cobrando custos altíssimos, que perigam inviabilizar ainda mais a atividade da companhia.
PR – Pode dar exemplos de falhas habituais que pesam na rejeição dos pedidos de recuperação?
Novaes – O processo de recuperação judicial é complexo a ponto de incluir o Ministério Público como órgão obrigatório no trâmite, no papel de fiscal da lei. Conforme a gravidade da situação, um plano de recuperação requer o envolvimento de advogado, contador, administrador e até mesmo auditores. Lógico que deve-se seguir os termos da lei. Na prática, porém, deparamos com distorções a exemplo de planos de recuperação que pedem três anos de carência para pagamento de débitos, prazo fixado pela norma em dois anos. Dadas as falhas habituais com o intuito de formar um critério e evitar a transformação da recuperação judicial em falência, o Tribunal de Justiça de São Paulo expôs em acórdão que o plano deverá prever com precisão o valor a ser pago a cada credor. Outro fato comum, identificado na decisão do mesmo órgão e que acaba indeferindo os pedidos de recuperação, é a prática de antecipar pagamentos de menor valor a credores. Isso é nulo, ou seja, não surte efeito jurídico algum, pois há que se respeitar a ordem de preferência dos credores. Além do mais, constitui violação ao princípio do tratamento isonômico dos credores de uma mesma classe. Outra situação afetada por esta decisão é a prática de planos de recuperação tentarem suprimir ou diminuir a aplicação da correção monetária. Segundo o acórdão, ela é de aplicação obrigatória e sua supressão representaria enriquecimento ilícito do devedor sobre os credores. Da mesma forma, foi recusada a aplicação de índice para a fixação de juros. Por esse estratagema, a taxa de juros resultaria menor do que a legal. A aplicação dos juros e correção monetária fora dos parâmetros legais são exemplos de fatores capazes de gerar o indeferimento do pedido de recuperação judicial.
PR – Credores que continuam fornecendo produtos e serviços e até mesmo linhas de crédito para a empresa em recuperação podem ter benefícios e tratamento diferenciados pela Justiça?
Novaes – A lei confere incentivos a quem continua fornecendo produtos ou serviços, inclusive crédito, a empresas em recuperação. A norma concede a esses credores, denominados estratégicos, a chamada extraconcursalidade. Em resumo, o credor extraconcursal trata-se de quem continua a fornecer produtos ou serviços essenciais e crê no restabelecimento da atividade empresarial do devedor. Por causa disso, ele passa a contar com o privilégio de ser pago de forma preferencial, inclusive sobrepondo seus créditos aos trabalhistas. Aliás, falando em crédito trabalhista, convém informar que a lei garante o pagamento desses débitos de forma privilegiada. Deverão ser quitados em até 12 meses após a aprovação do plano de recuperação, limitando o valor a ser recebido pelo credor a 150 salários mínimos. •