Cadeia vulnerável
Em 21 anos de estrada, a recicladora Wise despontou entre as raras lideranças no ramo identificadas com plástico pós-consumo reciclado (PCR) de alto padrão. Uma reputação ancorada num parque fabril atualizado que tornou a empresa um dos primeiros integrantes do seleto time de recicladoras parceiras da Braskem na concepção de grades avançados de poliolefinas recuperadas, além de ter conquistado cadeira cativa no fornecimento de materiais para embalagens sustentáveis de brand owners do calibre da Unilever. Com base nesta milhagem de voo, Bruno Igel, CEO da Wise, rima realismo com otimismo na entrevista abaixo sobre a conjuntura turva da reciclagem de PCR no país.
O mercado brasileiro de plástico pós-consumo reciclado (PCR) é dominado por material de baixo valor agregado e baixa qualidade. Num país de baixa renda, educação e consciência ambiental incipientes, o que é preciso para tirar do PCR de alto padrão a imagem de caro produto de nicho?
A reciclagem tem evoluído muito no Brasil e nos orgulhamos por fazer parte dessa evolução. A vinda de brand owners com metas agressivas de consumo de material reciclado, os diferentes fóruns de discussão, entre eles o Hub de Economia Circular e a Rede de Cooperação para o Plástico, além da importância da conscientização sobre o melhor uso dos recursos naturais decerto farão que o setor reciclador evolua. Nesse sentido, também contribuem os selos e certificações promovidos pela Abiplast e outras entidades, garantindo a procedência e qualidade do material reciclado. Ou seja, hoje temos recicladores com produtos de qualidade, escala e capacidade de investimento para atender a demanda crescente. O mercado conta com parâmetros claros para definir quem atenderá com qualidade, constância, escala e consciência ambiental e social e quem tem menos comprometimento com qualidade e com os impactos gerados por seu produto na sociedade.
Para essa minha visão otimista se concretizar, muitos gargalos devem ser superados. O plástico reciclado ainda depende de uma cadeia de suprimentos complicada, cheia de intermediários e, eventualmente, de problemas fiscais, ambientais e trabalhistas. O governo não implementa a coleta seletiva de maneira abrangente e eficiente nem investe em modelos alternativos de separação de resíduos. Por fim, ele não provê crédito de imposto para a sucata e cobra impostos superiores aos da resina virgem sobre a cadeia do plástico reciclado. Ou seja, o ente público participa pouco, cobra muito e cobra mal, dificultando a formalização completa do setor. Sem isso e sem a cadeia de suprimentos estável e confiável, os investimentos são afastados e, por falta de política clara ou priorização mínima por parte do governo, a indústria recicladora brasileira periga ficar na rabeira do mundo.
Apesar de todos esses riscos, continuo a crer na tendência positiva. O mercado vem evoluindo na esteira da demanda e do suporte de grandes empresas globais engajadas em valorizar e usar todo o potencial do plástico, criando no percurso externalidades tremendamente favoráveis à sociedade. Desse modo, é natural que o PCR de qualidade caminhe para tornar-se o material de oferta dominante nesta categoria.
Wise tem nome feito como fornecedora de PCR de alto valor agregado. No geral, o mercado brasileiro, continua firme na prática de decidir comprar esse material com base no preço e disponibilidade da resina virgem ou já dá sinais de estar mais receptivo ao valor do apelo da sustentabilidade?
O plástico reciclado tem uma estrutura de custos completamente diferente da resina virgem e, se sua dinâmica segue o preço do material novo, em tempos de baixa o impacto sempre recairá sobre o elo mais fraco. É preciso atentar para uma condição: quando se reduz em exagero o preço do material reciclado a margem da maior parte dos elos da cadeia se mantém, mas o catador ou cooperado vai voltar para casa com R$ 500 ao invés de R$ 1.500. É este efeito que precisa estar claro quando vigora a decisão de diminuir em demasia o preço do PCR. Em paralelo, é natural que todas as empresas estejam preocupadas com o custo de seus produtos e não há incoerência entre as duas coisas. A solução reside em eficiência e estabilização de preço em vez da volatilidade atual. A cadeia da reciclagem ainda é ultra ineficiente, com coleta cara, desmesurada separação manual, elos e mais elos de intermediários e, muitas vezes, logística ruim. É isso que precisa ser atacado e, ao menos, algumas das empresas de bens de consumo e convertedores já atentaram para isso e tem planos a respeito. Nossa ideia é de que, com o correr do tempo, eles se juntem a nós em investimentos estruturantes, que mudem a escala e eficiência da reciclagem, de modo a tornar os custos do plástico recuperado inferiores e mais estáveis que os do polímero virgem.
A reciclagem química toma vulto no setor plástico mundial. Como avalia a possibilidade de a Wise estender o braço nessa tecnologia, de modo a completar seu portfólio de poliolefinas de alto desempenho e originárias da reciclagem mecânica?
A reciclagem química vai ganhar corpo e isso é ótima notícia. Há diversos materiais que, com as tecnologias mecânicas hoje disponíveis, perdem enorme valor ao serem reciclados, a exemplo do filme biorientado de polipropileno (BOPP). É material com muita tinta, eventualmente integrando camadas num laminado, difícil de lavar e que, ao final do processo de reciclagem mecânica, resulta num recuperado com valor de mercado bastante baixo. É um caso típico de material de reciclagem viabilizada pela rota química.
O que não parece fazer sentido é a hipótese de substituição massiva da reciclagem mecânica pela química. Conseguimos hoje pegar frascos de xampu, reciclá-los e transformá-los na mesma embalagem. Se isso é possível com tecnologia relativamente barata, por que mudar a praxe por algo tão mais complexo e caro como a reciclagem química? Diante desse quadro, acho que a reciclagem química vai progredir, em especial onde houver cadeia de suprimentos de sucata estável e grande o suficiente para tanto, abrangendo em particular materiais de reaproveitamento complexo pela via mecânica. A Wise estará atenta a essa evolução, como eventual participante do mercado com as tecnologias já desenvolvidas e, em determinados casos, licenciadas pelos grandes players em reciclagem avançada.
Vários analistas declaram que a insuficiência de resina virgem iniciada em 2020 deve estender-se até 2022. Qual deve ser o reflexo dessa carência sobre a disponibilidade e preços de resíduos para reciclagem este ano?
Falta de resina é ruim para o mercado como um todo. Claro que alguns lucram e outros perdem, mas, no geral, gera instabilidade e ambiente mais difícil para investimentos e novos projetos. Posto isso e por mais que a gente advogue em direção a não correlação do preço das resinas virgens e recicladas, ainda há evidente correlação. Assim, em cenários de alta de preços e, em especial de indisponibilidade de resina virgem na região, o preço da sucata sobe na mesma ou até em maior proporção. O efeito positivo disso na cadeia é ter mais dinheiro para trabalhar a cadeia de suprimentos, remunerar melhor os elos iniciais e permitir investimentos maiores em modelos de logística reversa. Os volumes de captação de matéria-prima também devem crescer, devido ao preço maior da sucata plástica e de mais pessoas interessadas em sua separação. A parte mais difícil é que a instabilidade dificulta o planejamento e os investimentos, em particular devido à difícil previsibilidade do preço dos materiais após a regularização do fornecimento. Também é discutível se, em altas rápidas como as ocorridas em 2020, o primeiro elo é efetivamente beneficiado ou se são os intermediários que aproveitam os lucros mais relevantes.
Wise é tradicional aliada da Braskem no desenvolvimento e produção de PP e PE reciclados de alto padrão. Como encara agora o fato de sua parceira em breve tornar-se sua concorrente, com planta própria de reciclados e escorada também na integração desde a resina virgem até a coleta seletiva?
Atuamos com a Braskem há mais de cinco anos, com volumes crescentes. Sua entrada na reciclagem, com metas super ambiciosas, é positiva para o nosso setor. Em tese, um player desse calibre tem capital para investir em desenvolvimento, tecnologias disruptivas e técnicas mais avançadas que, com o tempo, acabam incorporadas à indústria recicladora como um todo. A Braskem tem declarado publicamente a intenção de produzir em sua recicladora-modelo, incentivando em paralelo as parcerias com empresas do setor, o que é bom. Para seu negócio principal (resinas virgens) seguir evoluindo, o mais importante não deveria ser o volume que a empresa produzir em sua planta de reciclagem, mas seu empenho em zelar para que o plástico atenue sua principal externalidade negativa, problema que está no descarte incorreto e no não reaproveitamento de suas ótimas propriedades. Por essas razões, minhas fichas estão do lado de quem enxerga na Braskem um player importante para incentivar o setor brasileiro de reciclagem, mantendo também para isso parcerias como a que tem conosco.
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