Alguma coisa começa a mudar

A indústria de reciclagem entreabre a porta para a nova realidade do mercado

Apesar da sobrecarga fiscal, disponibilidade inconstante de refugo de qualidade, crédito caro e dos preços declinantes da resina virgem, a indústria da reciclagem não está sentada à beira do caminho. O evangelho da economia circular vem sendo lido como manual de oportunidades por novos entrantes no setor e a escalada mundial da digitalização nos equipamentos prenuncia a invasão de resinas recicladas de padrão inédito em aplicações mais nobres. Paolo De Filippis, presidente da Wortex, pedra angular nacional em sistemas de reciclagem, expõe na entrevista a seguir o andamento dessas forças que vão varrer do polímero de segundo uso a imagem de commodity de segunda mão.

Paolo De Filippis
Filippis: muitos recicladores ignoram como medir o custo/benefício dos equipamentos.

Nunca se falou tanto em reciclagem de plástico no país. Este interesse crescente tem ou não influído para incrementar as vendas dos sistemas Challenger da Wortex, apesar da desaceleração da economia?
À primeira vista, o momento me leva a parafrasear o título de uma comédia de Shakespeare: “Much ado about nothing” (muito barulho por nada). Mas sim, esse pensamento global de economia circular está influindo razoavelmente bem em nossas vendas, além de testar nossa criatividade em desenvolver tecnologias de linhas mais complexas em termos de automação e flexibilidade. Ou seja, o maquinário deve ter a capacidade de processar refugos rígidos e flexíveis provenientes da coleta seletiva, do lixão ou aparas industriais à base de resinsas como poliolefinas, PET ou poliamidas. Percebo também um movimento muito forte para esses materiais reciclados, devidamente beneficiados, serem utilizados em aplicações mais nobres que o proverbial saco de lixo. Confirmo ainda a entrada de estreantes em busca de caminhos e negócios diferenciados no âmbito da reciclagem. Volta e meia a Wortex é convocada para participar dessas estratégias e muitas delas resultam em encomendas de equipamentos.

O perfil-padrão do reciclador de plástico no Brasil aponta para um setor de acentuada informalidade a cargo de indústrias de menor porte, controle familiar e um parque fabril defasado. Em contraste, hoje ocorre no I Mundo um intenso embarque da digitalização nos equipamentos de reciclagem. Até que ponto os recicladores daqui se predispõem a remunerar o incremento de facilidades digitais nos equipamentos solicitados para a Wortex?
A Wortex já percebeu esses novos rumos e está preparada para atender à procura por linhas multitarefa, de alto teor de digitalização, economia de energia e facilidade de manutenção. O parque industrial da reciclagem no Brasil bate com a descrição na pergunta. Para sobreviver e lucrar, os recicladores devem atentar para essas tendências globais. Grande parte deles está a par delas, mas encontra dificuldades de financiamentos com taxas adequadas para seus projetos. Mas cabe aqui uma ressalva: devido aos custos, as evoluções tecnológicas na reciclagem estão fora da realidade econômica desse setor no Brasil. O que não significa que ele não deve atualizar seu defasado parque fabril. Ele não precisa nem tem como investir para chegar ao estágio da vanguarda tecnológica, mas pode avançar para um patamar intermediário. Por exemplo, é corriqueiro em nosso negócio o reciclador focado apenas no preço inicial ir primeiro para um equipamento chinês e, só depois, ao constatar no bolso o peso de gastos como energia elétrica e dependência de mão de obra, migrar então para o sistema Wortex. Vale frisar que muitos recicladores estão cientes desse custo/benefício, mas o contingente de desinformados dessas noções básicas também é considerável.

A pressão ambientalista e a regulamentação da lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) tendem a petroquímicas e grandes transformadores a estender o braço na reciclagem?
Um dos grandes problemas que afligem a reciclagem é a demora da lei da PNRS sair do papel. Poucas instituições, privadas ou públicas, estão atentas ao desenvolvimento e criação de unidades de separação do lixo urbano para alimentar recicladoras, viabilizando sua lucratividade e incentivando o desenvolvimento desse setor. Em frente: sim, existem transformadores e convertedores de peso entrando na reciclagem ou estimulando a atividade, como prova a procura constante por eles de nossos sistemas mais complexos de recuperação de polímeros. Do lado oposto, pesa nesta conjuntura um fator aparentemente inibidor. Por exemplo, devido à superoferta global, os preços declinantes de PE virgem andam mais perto da resina reciclada. Pela lógica, isso desanimaria o negócio de recuperar a resina. Afinal de contas, quem iria comprar PE para segundo uso e o polímero zero km tem preço equivalente? Resposta: porque a reciclagem de plástico hoje não é mais apenas uma atividade; mas uma necessidade da sociedade e do planeta. Em virtude disso, tudo se encaminha, bem ou mal, para firmar em determinado momento a indústria nacional de reciclagem. Por ora, ela padece de margens baixas, alta tributação e falta de incentivo para atualizar a tecnologia, três fatores que conspiram contra a rentabilidade, levando-me a imaginar que muitas empresas devem recorrer à informalidade para fazer frente a esta conjuntura hostil ao negócio.

A pressão ambientalista e a regulamentação da lei da PNRS também tendem a estimular o surgimento de mais indústrias de reciclagem e/ou joint ventures de recicladoras existentes?
Sim, como já disse, esse cenário favorece o surgimento e a expansão de indústrias de reciclagem. Aqui na Wortex presenciamos este movimento em especial em projetos sigilosos de investimentos em novas recicladoras no Sul/Sudeste. A hipótese de joint ventures não se sustenta, apesar dos ganhos em escala. Acontece que, em regra, recicladoras menores são controladas por fundadores, cujo cálculo do valor real de suas indústrias é turvado pelo peso do valor afetivo. Além do mais, cada uma dessas empresas tem peculiaridades de processo, decorrentes aliás da tecnologia superada.

A digitalização dos processos e a obsessão com a sustentabilidade deflagraram nas máquinas de transformação do I Mundo uma corrida rumo a índices mínimos de aparas industriais. No Brasil, lotes volumosos delas constituem um valorizado nicho de matéria-prima para reciclagem. A seu ver, o comércio de aparas para reciclagem ainda deve vigorar por muito tempo no Brasil ou a situação tende a mudar?
O volume de aparas tem caído porque as empresas que as geram perceberam que, com equipamento adequado, boa parte desse refugo pode retornar no ato à utilização no processo inicial. Lógico, a possibilidade de transformar essas aparas se deve às novas soluções da tecnologia digital em termos de controle de processo e qualidade final do produto. Por extensão, a tendência é de contagem regressiva para o comércio de aparas para reciclagem. Até segunda ordem, elas continuam a existir, mas em volumes tornados pela tecnologia atual cada vez mais sem envergadura para sustentar uma atividade comercial complementar para empresas geradoras de aparas. •

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