Tudo na vida é passageiro, menos o condutor e o motorneiro. Nos pináculos da globalização, a China era paparicada como a fábrica do mundo e agora, com a pandemia forçando mercados a se fecharem e reverem as cadeias de suprimentos, a fábrica do mundo, principal parceira de um monte de países, entre eles o Brasil, se afigura a uma genuína tortura chinesa. No setor plástico nacional, este drama é sentido na carne pela multidão de componedores de resinas, pois a China manda e desmanda na produção de pigmentos e aditivos que, por força da trinca covid-19/ dólar/frete internacional enxugado, acabam encarecendo os masterbatches ao extremo, justo quando o Brasil arfa numa maca da qual não se livra de estalo.
Na década passada, a mão de obra barata atraiu a montagem de fábricas de muitas empresas na China, de olho na exuberância do consumo doméstico e na possibilidade de exportar a preços sem rivais. O Brasil despontou entre os parceiros comerciais. “Em 2019, as exportações para a China representaram 21,8% das vendas internacionais do Brasil e as importações chinesas representaram 19,9% das compras externas do país”, confronta Helmuth Hoffstatter, fundador da curitibana LogComex, plataforma de big data, inteligência e automação para operações de logística internacional.
Choque da disruptura
As plantas brasileiras dependentes de produtos da fábrica do mundo entraram em sinuca de bico desde 31 de dezembro de 2019, data do primeiro registro do surto do covid-19 na cidade de Wuhan, polo industrial chinês. “Para conter a proliferação do vírus, o governo chinês estendeu o feriado (10 dias) do ano novo lunar (esfriando o consumo intenso neste período) e determinou o confinamento da população, iniciado por Wuhan”, assinala Hoffstatter. De 25 de janeiro até 10 de fevereiro, ele segue, a China decretou isolamento total, sua produção e economia pararam e, pela primeira vez em 30 anos, o PIB chinês registrou contração de 13,5% na manufatura, afetando muitas cadeias de suprimentos globais. “Com a drástica queda na produção, as exportações chinesas caíram cerca de 17% e menos capital estrangeiro entrou na China, elevando sua taxa de desemprego e diminuindo a geração de renda e consumo”, repassa o dirigente da LogComex. Os negativos efeitos colaterais dessa retração da China não serão sanados tão cedo, julga Hoffstatter. “Afinal de contas, diversos países baseiam sua economia e indústria em produtos adquiridos da China. É o caso daqui, onde várias indústrias relataram interrupção de atividades por falta de componentes muitas vezes produzidos apenas por chineses”, ele coloca. “O desequilíbrio assim causado na economia, a falta de produção e a valorização do dólar levarão ao aumento nos custos dos artigos brasileiros, refletidos em reajustes nos preços repassados ao consumidor final”.
John Richardson, analista da consultoria Icis especializado em petroquímica asiática, considera que a disruptura causada nas cadeias globais de suprimentos pela China em luta contra o convid-19 vai atrasar a retomada do país, devido a fatores logísticos como o restauro de rotas de frete cortadas em função do colapso das exportações chinesas para um mundo em crise. “Deve demorar para os estoques internacionais de produtos exigirem a reposição que faça as indústrias exportadoras da China voltarem a operar totalmente e este retorno moroso se estende à procura mundial pelo fornecimento de itens chineses”, ele prevê em seu blog. Entre as pedras no caminho da logística, Richardson cita containers parados em portos como os da Índia porque o corona suspendeu o expediente aduaneiro e o trabalho de estivadores e caminhoneiros para movimentar as cargas, sem falar nos cortes instaurados sob a pandemia no contingente de frotas para o modal marítimo, o que encarece o espaço de armazenagem dos navios remanescentes, inviabilizando não raro o custo do frete. Embora mais cara que remessa por navio, a via aérea é uma alternativa a considerar, ele coloca. “O movimento das companhias de aviação desabou com a pandemia e a remessa aérea de materiais pode ser uma forma de manter abertas as cadeias de suprimentos e, ao mesmo tempo, ajudar este setor de transporte”.
Estoques afetados
“No momento, minha maior preocupação é com o possível desabastecimento de pigmentos e aditivos, em grande parte produzidos na China”, pondera José Fernandes Basílio, sócio e diretor da componedora Cromaster. Sua inquietação, ele reitera, provém da paralisia parcial das atividades chinesas, inclusas plantas de pigmentos e do comprometido funcionamento dos portos e embarques. “A falta de containers para alocação de materiais em portos chineses, em razão do acúmulo de cargas para exportação, já causou alguns atrasos nos fornecimentos de insumos para o mercado brasileiro, afetando os estoques locais”. Fernandes agrava o enrosco com a disparada do dólar pintando como justificativa para eventual falta de pigmentos e aditivos importados. “O câmbio batendo recordes de alta deixa os preços nervosos e os de alguns materiais já foram reajustados em fevereiro”, ele nota. “Como 70% das nossas compras de matérias-primas são negociadas em dólar, imagine a pressão que hoje incide sobre os preços delas. Para atenuar o baque do desabastecimento, aumentamos um pouco os volumes internos de estoques para atender os clientes até o cenário clarear”.
Fernandes confirma a alternativa de importar pigmentos e aditivos europeus e norte-americanos. “Neste momento, porém, com países praticamente parados, caso da Itália, tudo leva a crer no desabastecimento mundial de vários produtos, encarecendo-os bastante e dificultando assim o seu acesso, uma possibilidade que também pode ser suavizada pelo consumo reprimido”.
Para resguardar a competitividade nos preços de seus concentrados abalada pelo torniquete do câmbio e vírus sobre pigmentos e aditivos importados, Fernandes não vê escapatória. “Não há empresa a salvo das consequências, de modo que alguns reajustes alinharão os preços em patamares mais altos; caso contrário, sucumbiremos todos ao covid-19, estejamos infectados ou não”.
Parceria salvadora
Elisangela Melo, gerente nacional de vendas da componedora Pro-Color, endossa com moderação o fatalismo de Fernandes. “Com a multiplicação de componedores no país, a demanda por masterbatches é superada pela oferta de produtos locais, quadro piorado pela incidência de produtos importados”, ela explica. “Portanto, a relação ganha-ganha nem sempre é respeitada, pois de um lado estão os componedores desesperados para faturar e, do outro, os transformadores favorecidos pela disponibilidade de tantas opções similares”. Turbinado pelo coronavírus, o dólar na lua aumenta os custos da produção de masters, já atazanada pela economia atolada. “O quadro abre a necessidade de abrir a negociação transparente de preços para buscar um equilíbrio”, complementa a gerente. “Respeitamos a necessidade do cliente sem comprometer nossa saúde financeira, pois o impacto no custo é grande e há falta de matérias-primas para as formulações”.
O corte desfechado pelo covid-19 no acesso a pigmentos e aditivos asiáticos e seus reflexos sobre os masters da Pro-Color são digeridos por Elisangela de forma ambivalente. “Do lado negativo, a interrupção do embarque de insumos da China e Índia, complica a operação do componedor no Brasil porque ele segue o preço internacional e, em algum momento, precisa repor seu estoque”, ele observa. “Do lado positivo, o componedor que privilegia a parceria e saudáveis tratativas comerciais com fornecedores desses pigmentos e aditivos terá vantagens no atendimento e quem especula preços e faz importações diretas acabará sofrendo aumento de custos e até a falta de alguns itens”. A Pro-Color, encaixa a executiva, possui estoque de segurança dos principais insumos e sua equipe se reúne com parceiros de pigmentos e aditivos para atualizar informações e alinhar com eles a previsão de vendas em determinado fluxo de trabalho (forecast).
Fretes no spa
“Nossas programações de produção não foram afetadas pelo efeito do coronavírus sobre a importação de pigmentos e aditivos”, atesta Wagner Catrasta, gerente comercial para América Latina da componedora Termocolor. “Contornamos o problema com estoque de segurança e forecast de 90 dias entre clientes e fornecedores. “Em fevereiro, por exemplo, alertamos clientes para possíveis momentos de falta de matéria-prima para produzir concentrados e assim conseguimos nos antecipar e contornar esta situação”. Na mesma trilha, Catrasta comenta que suas principais fontes asiáticas de insumos voltaram à ativa em fevereiro com cerca de 70% de ocupação da sua capacidade. “Vale considerar ainda a constatada redução da frequência de frete de origem da Ásia, fator que pode ocasionar falta de matérias-primas”, ele salienta. “O único ponto cujo baque não pudemos atenuar para os clientes foi o encarecimento das matérias-primas dos concentrados, acarretado pela sua oferta mundial em queda e dólar em alta, mas o repasse desses custos é objeto de negociação acertada caso a caso com transformadores parceiros”.
A Termocolor dispõe de opções nacionais para todos os materiais importados que utiliza, assegura Catrasta. “Garantimos o atendimento desses fornecedores trabalhando também com forecast de 90 dias e, como a incerteza do suprimento já atingiu fabricantes europeus de pigmentos e aditivos, a alternativa doméstica se tornou a mais viável e segura”, ele argumenta.
Barbas de molho
Fernando Bado, gerente de compras para a América Latina da Ampacet, múlti dos EUA em masters, informa não ter sofrido por ora com o desabastecimento de matérias-primas. “Nossa política de estoque para produtos importados, em particular, pigmentos e aditivos, é de 90 dias de consumo e não tivemos cancelamentos e atrasos nos envios dos fornecedores nem registramos encarecimento dos fretes, ao menos até os últimos pedidos colocados”, ele avaliava em 20 de março.
Para se prevenir contra a ausência de pigmentos e aditivos, Bado ressalta ter aumentado os estoques da estrutura regional da Ampacet, com plantas no Brasil, Argentina, Chile e México. “Foi acionado um plano de contingência pelo qual uma unidade pode dar, se preciso, suporte a outra”. Conforme salienta, contratos globais garantem à empresa disponibilidade de produto em vários fornecedores. “Temos ativado pedidos a todos eles para evitar cancelamentos ou adiamentos nas entregas, mas a situação muda a cada dia e continuamos a monitorar os embarques”, alerta o gerente.
Dependência da Ásia
Nos últimos 20 anos, a produção mundial de pigmentos orgânicos deslocou-se quase por inteiro para a China e Índia, assinala Marcos Raicher, CEO da distribuidora Colornet. “A China especializou-se em pigmentos azo (vermelhos, amarelos e laranjas) e a Índia em ftalos (azuis e verdes)”, ele distingue. “A indústria ocidental de pigmentos praticamente desapareceu e hoje somos todos dependentes dessas duas fontes”. Com a erupção em janeiro do coronavírus na China, a paralisação de atividades imposta pelo governo afetou o fornecimento de pigmentos azo para a produção internacional de masters, Brasil incluso. “A oferta de pigmento chinês já piorara em 2019, quando plantas químicas foram fechadas por descumprimento da legislação ambiental”, lembra Raicher. Com a redução do risco de contaminação na China a partir de março, percebe o dirigente da Colornet, houve gradual retomada da produção e transporte, situação que ele espera normalizada em abril. “O suprimento de pigmentos indianos azuis e verdes não foi abalado, pois independem de matéria-prima chinesa”.
Não há analgésico para os balancetes dos componedores abalroados pelo furacão cambial, evidencia o dirigente da Colornet. “O Brasil importa quase 100% dos pigmentos orgânicos e nós, como agentes, não temos opções senão praticar preços dolarizados, pois nossos custos e obrigações com o fornecedor são prescritos em dólar”, justifica Raicher. “Mesmo quando havia produção de pigmentos no Brasil, seus insumos também eram importados”.
Para manter afiada a competitividade de seus preços com bom custo/benefício, Raicher ressalta sempre renegociar, quando preciso, os pedidos com suas bandeiras para minimizar as punhaladas do câmbio. “A Colornet comercializa pigmentos azuis e verdes ftalos, violeta 23 e rosa 122 da Meghmani Índia e amarelos, rubis e laranjas do grupo chinês Lily, além de distribuir azul e violeta ultramar, amarelos titanatos e azuis e verdes de cobalto da inglesa Venator; perolados e metálicos da americana Silberline e, à parte dos colorantes, aditivos para termoformagem, marcadores a laser e retardantes de chama não halogenados da alemã Budenheim”.
Torcida pela normalização
Fabricante e revendedora de pigmentos importados, a Transcor sobressai entre componedores de masters como fonte de colorantes como azuis e verdes ftalo e amarelos e laranjas orgânicos, exemplifica o diretor de marketing Roque Guimarães Antunes. “Até o momento, nossa oferta de pigmentos e corantes não foi afetada pela propagação do coronavírus, devido ao alto estoque que mantemos para atendimento”, ele atestou em 12 de março. Mas no plano geral, comenta, os portos chineses estiveram fechados de 24 de janeiro ao final de fevereiro. “A situação ainda não se regularizou e as fábricas de pigmentos ainda não rodam em plena carga na China, de modo que talvez convivamos com diminuição desse suprimento no período abril/maio, mas sem desabastecimento”.
Guimarães engrossa o coro de que os preços dos pigmentos são dolarizados e a aguda desvalorização do Real turbina os reajustes nesses insumos para clientes, como os componedores, cuja operação é regida pela fraca moeda brasileira. “Os preços são dolarizados e quanto a isso não temos muito o que fazer”, reconhece Daniel Aranon Beca dos Santos, coordenador da unidade de negócio da Braschemical, agente de pigmentos e aditivos importados. “Ainda não sentimos no mercado de masters uma ameaça maior dos produtos nacionais, estimulados pela alta do dólar”. Entre as joias da coroa do portfólio para plásticos da Braschemical, Santos empunha pigmentos perolados da chinesa Pritty e fluorescentes da americana Dayglo e, fora colorantes, aditivos minerais da Venator e retardantes de chamas não halogenados da americana JLS.
A Braschemical já acompanhava de perto a conjuntura na China desde o fechamento de indústrias químicas por infrações ambientais, antes da pandemia se alastrar, comenta Santos. “Aprimoramos a programação de compras e outras ações para contornar imprevistos, de modo que quando o coronavírus se disseminou não deixamos os clientes sem produtos”. “No momento, o maior impacto se nota no aumento dos custos logísticos e do lead time de entrega e a carência de containers também dificulta as remessas das importações”.
Embora seu mostruário provenha da China, Coréia do Sul, Índia e Itália, a agente Nexo International não registra por ora qualquer restrição causada pelo corona em sua oferta de aditivos para polímeros, assegura o diretor Francisco Neves da Rocha. “No entanto, o mercado geral desses materiais precificados em dólar sente há algum tempo a falta de determinados insumos chineses, efeito das perturbações na cadeia de suprimentos causadas pela saída de cena de indústrias químicas em desacordo com as normas ambientais, situação agravada desde o início do ano com as dificuldades logísticas trazidas pelo covid-19”. No mapa de vendas da Nexo, pinça Rocha, os auxiliares mais procurados para masters e compostos são antioxidantes e fosfitos da coreana Songwon e amidas deslizantes da indiana Fine Organics, fabricante também do novo aditivo Finasperse DT 500N, capaz de substituir as ceras utilizadas como dispersantes de pigmentos na produção de masters póliolefínicos. “Ele pode reduzir a quantidade do colorante empregada e melhorar características como homogeneização, brilho e intensidade da cor, além de diminuir o entupimento de telas e pontos não dispersos”, acena Rocha. •