O mercado brasileiro de refrigerantes anda pelo fio da navalha. Na lupa da empresa de pesquisas Mintel, o volume de vendas caiu 4,6% no ano passado, para a marca de 11,5 bilhões de litros, e deve retroceder de 5%a 6% no exercício atual. De 2011 a 2016, o único balanço a salvo do vermelho foi o de 2014 (+1,6%), atesta o acompanhamento da Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (Abir).
A descida da ladeira tem a ver, em particular, com a procura por bebidas mais saudáveis, percebe a Mintel. Além desse solavanco nos hábitos de consumo, a indústria de refrigerantes está entre as mais pressionadas pela bancada da economia circular, obcecada em combater as embalagens descartáveis e em priorizar as retornáveis e reutilizáveis.
Sinônimo de refrigerantes e nº 1 absoluto no setor, com participação de mercado fixada em 57,8% em 2017 pela Mintel, a Coca-Cola Brasil, impactada por noticiada queda de 6% no volume de vendas no último período, engrossa esse clima de ode à sustentabilidade prenunciando dias melhores para PET reciclado bottle to bottle (BTB). “Estamos focados em viabilizar o aumento do uso do plástico reciclado em maiores quantidades de garrafas de refrigerantes”, atesta Thais Vojvodic, gerente de sustentabilidade da empresa.
Em submissão a seu anunciado plano intitulado “Mundo sem Resíduos”, a corporação The Coca Cola Company alardeia a meta de coletar o equivalente a 100% das embalagens que coloca no mercado global até 2030. Conforme foi divulgado, prevalecerão no recolhimento as latas, tampas e garrafas de vidro e PET, um conjunto equiparado a 85% dos recipientes utilizados pela empresa. Em paralelo, reiterou na mídia o CEO James Quincey, a companhia prossegue no desenvolvimento de embalagens 100% recicláveis e empenhada em reduzir a quantidade de PET em suas garrafas. As versões atuais, por sinal, são perto de 20% mais leves que as garrafas similares produzidas para a Coca-Cola há 10 anos.
No Brasil, a empresa calcula aplicar ao redor de R$ 1,6 bilhão no período 2016-2020 para cumprir os objetivos do programa “Mundo sem Resíduos”, mediante atuação nas áreas de design de embalagens, coleta do refugo descartado e parcerias. Em dois anos, por sinal, a Coca-Cola Brasil espera dobrar para 30%, sobre os indicadores de 2016, a participação das garrafas retornáveis de vidro e PET em seu portfólio. “Ambas têm a mesma logística reversa, a cargo da frota própria do Sistema Coca-Cola, e a mesma reciclabilidade”, considera Thais Vojvodic. “A embalagem de vidro é de um litro, enquanto a de plástico tem versões de dois litros ou mais. Suas ocasiões de consumo e canais de vendas são diferentes, de modo que elas continuarão a coexistir em nosso portfólio”.
O ecletismo dá as cartas no portfólio de embalagens da Coca-Cola Brasil. Além de vidro e PET, dele constam a lata, caixa cartonada, caixa de papel (para mate a granel, por exemplo) envoltórios flexíveis (para refrescos em pó, por exemplo). As reciclagem dos materiais envolvidos varia em custos e complexidade tecnológica e de coleta, fatores que deverão pesar na passagem das embalagens pela peneira do plano “Mundo sem Resíduos”. Em relação à caixa cartonada, uma estrutura multimaterial de reciclagem é tão singular que apenas um fabricante dessa embalagem, a Tetra Pak, a empreende no país, Thais vê um ponto positivo. “O índice atual de reciclagem da caixa cartonada é muito maior do que no início de sua operação, mérito do desenvolvimento de tecnologias pelo próprio fornecedor do recipiente, destoando de outras embalagens multimaterial presentes no mercado e não utilizadas pela Coca-Cola”, ela pontua.
Em termos de mudança de estratégia de embalagem na Coca-Cola Brasil, elege Tais, “a movimentação mais relevante será o foco no crescimento das garrafas retornáveis, de vidro e PET”. A nova aspiração da empresa, martela a tecla a executiva, é ajudar a destinar corretamente o equivalente a 100% das suas embalagens primárias daqui a 12 anos. “No Brasil, estamos falando de 99% do portfólio em PET, alumínio, vidro e caixas cartonadas. “Todas essas embalagens primam pela reciclabilidade e serão mantidas, mas as demais terão de ser repensadas”, ela assinala.
Tempestade de interessados
Na raia do poliéster redivivo pela tecnologia bottle to bottle, único plástico reciclado permitido desde 2008 para uso no país em embalagens de alimentos, as indústrias usuárias do material têm pela frente a parada de materializar um milagre dos peixes: conciliar oferta e demanda do material recuperado. “A aceleração da tendência mundial em prol de PET BTB como substituto seguro, sustentável e economicamente adequado do poliéster base petróleo vai ajudar o Brasil a acelerar planos de uso do reciclado até então travado por fatores de cunho comercial”, acredita Irineu Bueno, sócio executivo da Global PET, indústria referencial na reciclagem bottle to bottle. “Acabamos de sair de um cenário onde o preço da resina virgem se igualava ao de PET BTB para clientes de grande volume de compra, o que retardou muito a demanda por este reciclado. Como PET BTB anda agora de 10% a 15% mais barato, enfrentamos uma tempestade de empresas interessadas em adotar a alternativa sustentável”.
No pano de fundo, porém, esta cadeia de reciclagem perdeu massa muscular, constata Bueno. “Atores importantes fecharam as portas nos últimos anos e a capacidade produtiva de PET BTB encolheu 39.000 t/a no último quinquênio”, ele dimensiona. “Qualquer grande player que opte por usar PET BTB sem fornecedor já estabelecido terá dificuldades em encontrar a matéria-prima este ano”.
O ponto de vista de Bueno merece endosso de Luca Geronimi, diretor da CPR, recicladora há 18 anos formadora de opinião na tecnologia bottle to bottle e que, além de injetar pré-formas, é controlada do conglomerado Valgroup, por muitos listado como o maior transformador de embalagens plásticas do Brasil. “O preço de PET BTB sempre foi inferior ao da resina virgem, mas, nos últimos dois anos e meio, a cotação dela ficou em patamares muito baixos. Em movimento a reboque, o preço de PET BTB veio então abaixo, fazendo o setor operar no vermelho, a ponto de algumas recicladoras fecharem as portas”, descreve o especialista.
Um complicador desse enrosco é o renitente excedente mundial e doméstico de PET virgem, alimentado inclusive pela penetração do reciclado convencional e pela busca incessante de gramaturas e paredes menores, por economia e ambientalismo, em garrafas como as de água mineral. “O setor nacional de PET BTB ainda opera com dificuldade”, lamenta Geronimi, “pois o preço da resina virgem ainda não se recuperou e os índices de coleta de sucata de PET não têm crescido enquanto sobe a demanda de outras indústrias clientes do refugo, como as de têxteis e resinas insaturadas/alquídicas”.
Por essas e outras, amarra o diretor da CPR, o cenário em PET BTB anda pouco atraente para novos investimentos. Para reforçar a oferta do reciclado, ele sugere o cumprimento na vida real de uma determinação da lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS): a responsabilização de todos os elos da cadeia e sociedade, com penalização dos infratores, pela destinação correta de PET pós-consumo. “Com isso acredito que a coleta, investimentos e metas de incremento do uso de PET BTB aumentariam”, julga Geronimi.
Boa vontade frustrante
Para Irineu Bueno, de nada adianta apoiar iniciativas de coleta e logística reversa de garrafas de PET se não houver mercado para o reciclado oriundo da sucata recolhida. “Por anos a fio, presenciei o apoio irrestrito de grandes empresas, levadas principalmente por marketing, a cooperativas de catadores e sistemas de entrega voluntária de descarte de PET, iniciativas que nunca decolaram porque a maior oferta de garrafas no passado recente só fazia seu valor cair em virtude do maior interesse pela resina virgem ter baixado a procura pelo reciclado”.
O reciclador elogia a nova posição da Coca-Cola e seu poder de sensibilização da sociedade. “Se esse plano sair do discurso, haverá aumento na demanda de reciclado BTB e no preço pago por garrafas descartadas, impulsionando um ciclo virtuoso e sustentável para as embalagens de PET e essa valorização do produto estimulará investimentos na eficiência da coleta do decarte e na oferta do reciclado BTB”, vislumbra Bueno. “No entanto, sendo realista e lembrando outros momentos, reconheço que fatores externos como o preço do barril e de PET virgem podem influenciar negativamente e nos fazer recuar alguns passos no caminho da sustentabilidade”.
Geronimi acha alvissareira a intenção de empresas como a Coca-Cola de aumentar o uso de PET BTB. “Mas, na prática, o melhor que podem fazer é não limitar seu preço do reciclado ao da resina virgem”, pondera. “Haverá momentos em que o preço de PET BTB não será competitivo e é nessas circunstâncias que, para manter o setor vivo, ele deve flutuar ao sabor da lei da oferta e da procura, o que depende do cumprimento da mencionada regulamentação da PNRS”. Outro estímulo de peso à cadeia BTB, ele emenda, viria do lançamento de embalagens de concepção norteada pelo seu ciclo de vida e reciclabilidade.
Cadeia desarticulada
Um nervo exposto na reciclagem brasileira de plásticos é a falta de isonomia tributária com o polímero virgem. A carga tributária do material recuperado é maior e explica a incidência de informalidade entre recicladores. Do mirante da Coca-Cola Brasil, Thais Vojvodic contesta este descompasso fiscal. “Trata-se de uma frente que a indústria em conjunto tem a oportunidade de se aprofundar para mitigar esse cenário, o que tornaria a logística reversa muito mais viável no país”, ela julga. Mas, além da bitributação (resina tributada na condição virgem e na reciclagem), Thaís enxerga, no âmbito de PET BTB, “uma série de barreiras da cadeia desarticulada e perda de material ao longo dos processos”, afirma.
Em tese, Geronimi concorda com o repúdio à bitributação colocado pela porta-voz da Coca-Cola Brasil. “Mas não vejo a cadeia de reciclagem desarticulada, pois, se assim fosse, inexistiriam os altos índices de reaproveitamento registrados em PET e alumínio”, contrapõe o diretor da CPR. “Ocorre que a coleta e prensagem do descarte de PET é realizada com frequência na informalidade por agentes muito frágeis, os catadores e sucateiros, dificultando assim a operação dos recicladores e inibindo novos investimentos no segmento. A implantação de fato da PNRS contribuiria para a expansão da coleta seletiva e incremento das centrais de triagem, gerando mais refugo reciclável de fontes formais”.
Irineu Bueno tem outra opinião. Ele concorda com Thais que a cadeia nacional de reciclagem de PET está desarticulada. “O desarranjo provém da localização dos grandes transformadores e de incentivos a produtos importados”. O maior potencial de reciclagem, argumenta o dirigente da Global PET, fica onde há maior consumo de produtos, no Sul e Sudeste, enquanto políticas carentes de nexo aboletaram a cadeia das pré-formas em Pernambuco e em outros países do Mercosul. “Decerto não se pensou em custos logísticos na localização dos dois produtores de PET no país, a 3.000 km do Sudeste, nem nos prejuízos causados pela importação de pré-formas com isenções tarifárias”, ele ironiza”.
Para a Global PET sempre foi muito frustrante ofertar a grandes transformadores PET BTB a preços competitivos, mas que não comportavam o valor estipulado por tonelada, de US$600 a 800, para levar o reciclado da nossa sede, em São Carlos, interior paulista, para Pernambuco ou Manaus”.
Vista com reservas pela executiva da Coca-Cola Brasil, a falta de isonomia tributária entre resina virgem e reciclada faz parte, associa Bueno, da barafunda fiscal nacional. “Não resultou vantajosa a ida de transformadores de PET para Pernambuco e Amazonas, pois os custos logísticos, a concorrência com empresas incentivadas do Mercosul, a dificuldade local de recrutar mão de obra qualificada, infraestrutura a desejar e a queda na demanda acabaram consumindo todo o lucro acalentado com essa estratégia”, avalia o reciclador. “Desde 2017, boa parte da capacidade instalada no país para transformar PET vem sendo desmontada, enquanto a do Paraguai cresce a passos largos”.
Para acertar os ponteiros, Bueno é pelo fim de todos os incentivos fiscais e redução da carga tributária para todas as empresas. “Se isso acontecesse, seriam muito beneficiadas empresas como a Global PET, de estruturas enxutas, focadas na qualidade e custo e que nunca tentaram sobreviver repousando sobre imposto declarado e não pago”. •