A proliferação de projetos de carros mundiais escanteou os componedores nacionais da sala vip dos plásticos de engenharia. Sem cultura exportadora nem interface com as matrizes das montadoras, eles acabaram, no geral, relegados ao piso térreo do ramo, provendo materiais para peças convencionais, de baixo conteúdo valorizador. “Não os vejo nas licitações que participamos”, atesta Marcos Curti, diretor para as Américas da Unidade de Negócios Performance Polyamides da Rhodia, controlada do Grupo Solvay.
A unidade da Rhodia em São Bernardo do Campo, Grande São Paulo, já é, por si mesma, um capítulo à parte no seu setor. A começar pela musculatura de sua infra, pois ela produz compostos verticalizada a montante de sua cadeia: recebe do complexo do grupo em Paulínia, interior paulista, os sais de náilon, resultantes da reação de ácido adípico com hexametileno de amina e destinados à polimerização de poliamida (PA) 6.6 – etapa também efetuada pela empresa na fábrica em Santo André, no ABC paulista. Esta resina e o tipo importado PA 6 são beneficiados em São Bernardo. Na petroquímica brasileira, a Rhodia é hoje o único produtor de um plástico de engenharia.
Com 20 anos de milhagem acumulada no ramo, a operação em São Bernardo também é notícia pela sua política motivacional, fora da moldura dominante no setor brasileiro de compostos nobres, em regra descuidado com o apuro dos conhecimentos do chão de fábrica e bem menos esbanjador no instrumental dos laboratórios na retaguarda da produção. “Nós comparecemos nos processos de homologação de materiais com ferramental, prototipagem rápida, design, simulação e suporte em testes de validação das peças. Ninguém faz isso no Brasil”, sustenta Gustavo Souza, especialista de desenvolvimento do mercado automotivo com sete anos de casa.
A planta da Rhodia estourou champanhe no início de julho. “Batemos o recorde de produção no histórico desde 2009 sem registro de acidentes no efetivo de 70 pessoas nos três turnos da operação seis dias por semana”, comemora Curti. O festejo encerra um retrogosto agridoce. Afinal, o recorde decorre, em boa parte, do comércio exterior. “Estamos exportando 70% do que produzimos, resultado meritório numa conjuntura de recessão, mas é atípico, pois, pela lógica do negócio, deveríamos exportar 30% do que fornecemos e vender o restante aqui dentro”.
As exportações de polímeros e compostos não se trata, nesse caso, da salvação da lavoura a bordo de um câmbio favorável no momento. Nos idos de 2011, quando acumulou as atribuições do negócio de plásticos de engenharia da Rhodia na América do Norte, a cargo de dois componedores contratados (tolling), Curti notou que a fábrica em São Bernardo só teria como operar de forma rentável se também se abrisse ao exterior. O mercado interno, além de inconstante, nunca possuiu escala suficiente – em 2016, o Brasil importou apenas algo abaixo de 40.000 toneladas de poliamidas 6 e 6.6 e as resinas grau plástico responderam por volta da metade desse total, atesta a consultoria MaxiQuim. “Para viabilizar as exportações necessárias, foram uniformizados, entre 2011 e 2014, os processos e especificações de cerca de 80% da nossa produção de polímeros e compostos com o mix das demais fábricas de plásticos de engenharia do grupo”, esclarece o diretor.
A operação da Rhodia também é um solitário nos dedos dos plásticos de engenharia no país porque, julga Curti, sua envergadura não condiz com a pequenez da demanda doméstica para animar um investidor múlti a construir uma infra similar da estaca zero. A montagem da unidade em São Bernardo e sua retaguarda de matérias-primas em Paulínia e Santo André remontam ao século passado.
Na selfie atual, a filial brasileira pega o terceiro degrau do pódio entre as unidades desse tipo da Rhodia no mundo, empoleirada numa capacidade arredondada por Curti em 100.000 t/a de polimerização e 50.000 t/a de compostos. Estes são gerados pelo trio de extrusoras alemãs Coperion mais a linha de aditivação direta do reator. As outras fábricas operam na França, Polônia, China, Índia, Coréia do Sul e, em escala comercial desde agosto, entra no rol a fábrica de 10.000 t/a montada com uma extrusora no México. “Foi implantada para suprir com primazia a filial da sistemista sul-coreana de autopeças injetadas Chunil”, justifica o dirigente. E o México produz mais carros que o Brasil.
A ênfase nas exportações respingou, em São Bernardo, na internacionalização de atividades que pegam do desenvolvimento de aplicações a reuniões de grupos das sete plantas sobre polimerização e extrusão, além da política de suprimentos e treino de operadores. “Bancamos mais de 50 viagens anuais das equipes ao exterior”, insere Curti. Renata Martins Dias, coordenadora de supply chain com sete anos de casa, serve de exemplo. Ela passou três anos na unidade da França e teve cacifado pela empresa uma especialização de renome e cujo custo explica a baixa presença de colegas do setor de compostos no Brasil: o curso da entidade norte-americana Apics, entidade que alia técnicas de manufatura enxuta (lean manufacturing) à cadeia de suprimentos na esfera industrial.
Uma prova do gabarito internacional do chão de fábrica: Domingos Ferreira do Nascimento, monitor geral de treinamento com 21 anos de empresa, vai preparar os operadores da filial no México para lidar com as singularidades da extrusora Coperion MEGAcompounder que pintam no dia a dia. “Por exemplo, como evitar ou consertar as quebras do junco (espaguete) no processo ou como efetuar a inspeção visual de indicadores do grau de homogeneidade do composto”, ele coloca. De olhos fixos nos monitores da sala de controle de duas extrusoras com vida útil média de 15 anos e uma de quatro anos, o operador de painel Marcos Firmino considera mínima a incidência habitual de ultrapassagem dos limites de tolerância nas etapas sob sua jurisdição, como a dosagem gravimétrica. “A automação na planta só não avança pela área de embalamento”, intercede Curti.
Samuel Sanches da Silva, líder de turno com 13 anos de casa, solta outros estímulos motivacionais: o reconhecimento advindo do programa de participação de resultados, bônus entregue duas vezes por ano; as ações para atualizar conhecimentos ligados ao seu cargo, tipo programas de desenvolvimento da liderança, e, por fim, o acesso direto aos humores do mercado de poliamidas, captados nas apresentações realizadas uma vez por mês na fábrica por convidados da cúpula dos clientes da Rhodia, caso recente do CEO da sistemista Valeo.
Focada em análises mais rápidas que a do laboratório de pesquisa da fábrica e antenada no grosso dos exames de reprovação de rejeitos, a sala de auto controle da planta tem a maior parte da área ocupada pela bancada com monitores e uma injetora hidráulica Sumitomo Demag Systec de 60 toneladas, para checagens como a de cores em corpos de prova . “Em média, o índice de reprovação de refugo é de 0,2% e temos como dar em 15 minutos a resposta de uma avaliação”, situam Rodrigo Batista da Silva, técnico de auto controle com 17 anos de fábrica, e o assistente Silvio Cesar Canhete dos Santos, com 15 anos de janela em São Bernardo. Não lhes falta suporte em pesquisa e análise, asseveram. Canhete prova esse apoio com a disponibilidade do equipamento HDT-Vicat, para determinação da temperatura de flexão térmica e amolecimento Vicat em resinas, e o instrumental de calorimetria exploratória diferencial (DSC). “O custo desses recursos”, ele afirma, “leva a maioria dos componedores a encomendar esses ensaios a laboratórios independentes”, sublinha o técnico.
Uma extrusora MEGA compounder e duas injetoras hidráulicas, Sumitomo Demag e Romi, compõem a antessala do laboratório de pesquisa. Ele é o microcosmo da estratégia de internacionalização do negócio burilada por Marcos Curti. Antonio César da Silva, técnico de pesquisa pleno há 27 anos na empresa, e Juliana Gutierrez Caruso, pesquisadora de desenvolvimento de produtos com quatro anos e meio de Rhodia, servem provas de como a interação mundial funciona. “A extrusora Coperion foi instalada ao final de 2016 por especialistas trazidos da fábrica em Lyon, familiarizados com as dificuldades de partida da máquina e, em contrapartida, estamos treinando aqui uma pesquisadora do laboratório da filial no México”, indica Silva.
Juliana toma como referência um projeto cuja concepção consumiu seis meses e caminha para um ano nas tratativas de homologação. Trata-se de PA 6.6 com 30% de fibra de vidro e aditivos sigilosos, receita destinada a substituir um composto similar, mas de desempenho inferior em quesitos como a resistência a envelhecimento térmico na tampa do comando de válvulas de carros brasileiros da Honda. “A operação entrosada da nossa cadeia de polímeros com as outras filiais de compostos encurtou o desenvolvimento da formulação hoje em tramitação na matriz da montadora no Japão”, ela acentua, concordando com Marcos Curti ao opinar que não enxerga como um componedor brasileiro sem conexões globais poderia competir por especificações dessa complexidade. “O diferencial do projeto é que o propósito da peça transcende a vedação, dando conta de outras funcionalidades, como a condensação do vapor emitido pelo óleo do motor”, esclarece Curti.
Gustavo Souza assinala que, há cerca de três anos, a operação brasileira da Rhodia cultiva o relacionamento com a subsidiária da Honda, convívio do qual brotou a luz verde para participar do projeto da tampa de comando de válvulas. Os próximos passos para o consumo de PA engordar em autopeças por aqui, percebe o especialista, envolvem o ingresso de PA 6.6 com 50% de fibra no lugar de metal em coxins do motor e de outros compostos no cárter de óleo de veículos leves. “Já são usados em caminhões no Brasil”, ele comenta. Em paralelo, Souza não perde de vista o potencial para PA em componentes de motores turbo. “A esmagadora maioria deles ainda é importada, pois a demanda por esse motor no Brasil ainda carece de escala para justificar o alto investimento nos moldes complexos das peças”. O laboratório em São Bernardo guarda esses compostos no pipeline para quando o motor turbo nacional acontecer.
Mais dia menos dia, ele pega. •