2021 marcou o fim do superciclo mundial de investimentos petroquímicos, iniciado em 1992. Foi também o último período de rentabilidade suculenta do plástico pós-consumo reciclado, embalado pelo evangelho da sustentabilidade e sem confronto com o polímero novo em folha. Passado a euforia com as novas plantas e consumo em linha, bateu em 2022 a ressaca do excedente entre capacidade e demanda de resinas, à sombra da anemia da economia internacional (em particular a China, com 40% do consumo global de plásticos). Com a superoferta, os preços dos termoplásticos virgens caíram a ponto de tomar mercado e sangrar o negócio do PCR. É a transposição para o Brasil desse desajuste mundial que transparece do relatório anual (histórico desde 2018) sobre os índices de reciclagem no país em 2023, rastreio a cargo da consultoria MaxiQuim por encomenda da iniciativa Plano de Incentivo à Cadeia Plástica (PICPlast).
Entre os efeitos do choque no setor, o relatório aponta queda em torno de 5% versus 2022 na produção de PCR (938.636 t) sobre os resíduos plásticos gerados (4.548.067 t) em 2023. Também evidencia a trombada durante o ano passado da demanda esfriada com a capacidade de reciclagem ampliada em 3.5% (para 2.385 milhões de t/a). Não foi à toa que o número aferido de recicladoras passou de 711 há dois anos a 689 no último período.
Descontadas as múltiplas variantes de PCR, Ricardo Mason, dirigente da recicladora/componedora Plastimil, comenta que materiais recuperados de alta complexidade e baixa oferta são hoje vendidos a preço de virgem, enquanto os preços de reciclados de cunho nobre e passíveis de substituir virgens podem ficar 10-20% abaixo do reciclado, índices que caem para 30-40% e 50-60% no comparativo com, respectivamente, reciclados de menor e baixíssimo valor agregado. Pela voz dominante na praça, em determinados momentos de 2023 PP e PE reciclados estiveram mais baratos no Brasil que similares virgens e, no geral, os preços de reciclados com alguma qualidade e conformidade com as normas variaram então de -10% a +20% sobre contratipos zero bala. Todos esses sinais difusos refletem as incertezas que latejam no último levantamento do PICPlast, interpretado nesta entrevista de Solange Stumpf, sócia executiva da MaxiQuim.
Com capacidade instalada de 2.385 milhões de t/a, a produção brasileira de reciclado (aparas + PCR) somou 1.364 milhão de toneladas em 2023. Rodou apenas com 42% de ociosidade. Como avalia esse quadro preocupante?
A indústria de reciclagem é caracterizada pelo baixo nível operacional, pois trata-se de processo relativamente customizado, a depender do tipo de matéria-prima processada. A dificuldade em termos de padronização de qualidade e de regularidade no fornecimento dos resíduos a serem utilizados torna a operação menos eficiente, se comparada a transformação de resina virgem. Além disso, 2023 foi um ano de baixa rentabilidade para o setor, o que aumentou mais ainda a ociosidade.
O balanço do primeiro semestre indica para o balanço de 2024 reação ou continuidade desse desempenho alarmante do setor de reciclagem em 2023?
O setor já começa a ver este ano uma melhoria nas margens, em especial a partir deste segundo semestre. Em parte, isso se deve ao aumento dos spreads de preços (reciclados – resíduos) e ao incremento na competitividade do reciclado frente à resina de primeiro uso. O crescimento da economia este ano também é favorável ao setor de plásticos como um todo, alavancando a demanda por reciclados.
Continua aumentando o excedente mundial das resinas virgens mais recicladas (PP, PE e PET). O que sugere ao setor reciclador para impedir maior perda de mercado e margens devido aos preços com viés de baixa das superofertadas resinas virgens?
A curto e médio prazo não há uma previsão de viés de baixa relevante nos preços internacionais das resinas virgens em relação ao patamar atual. Com isso, não se espera maior perda de margens no setor de reciclagem, além do que já foi perdido. A recuperação vai ser lenta e a superoferta de materiais de primeiro uso deve se manter no longo prazo. Mas, por enquanto, não se espera o impacto observado em 2023, quando os preços das resinas virgens estavam em patamares realmente muito baixos.
Considera possível que o mercado brasileiro venha precificar PCR com base em seu valor sustentável, sem usar como referência o preço da resina virgem?
O preço da resina de primeiro uso permanecerá uma das referências. Porém, o PCR tende a ter seus próprios drivers de precificação, relacionados à demanda. Isto porque a cadeia produtiva e o consumidor final vão valorizar cada vez mais o produto sustentável. Além do mais, a reciclagem mecânica está consolidada no Brasil, tem espaço para crescer e atender as exigências do mercado.
O governo elevou para 20% este ano as alíquotas de importação das superofertadas resinas virgens. Isso abre espaço para aumento do preço dos grades nacionais novos em folha. Esse encarecimento tende ou não a favorecer doravante a competitividade que faltou aos contratipos reciclados em 2023?
Quando ocorre o aumento mais expressivo de preços de resinas de primeiro uso e este novo patamar se mantém por tempo maior, a demanda das recicladas é afetada positivamente. Se o movimento é pontual, acaba não tendo maior efeito, pois a estratégia de substituição de materiais na linha de produção tem um custo elevado e o tempo de implementação deve ser levado em conta.
O levantamento da MaxiQuim mostra que a produção nacional de PCR em 2022 foi recorde desde 2018, com 1.106 milhão de toneladas. No mesmo período, a superoferta mundial e local de resinas virgens concorrentes estava em vigor. Por que o impacto desse excedente só foi sentido em cheio este ano, com a produção do reciclado caindo para 939.000 toneladas?
Os preços das resinas virgens começaram a ser afetados pela superoferta de forma mais significativa no segundo semestre de 2022. No Brasil, o efeito foi verificado, em particular, a partir do quarto trimestre. Com isso o setor de reciclagem sentiu o impacto em 2023, pois há um delay na tomada de decisão quanto à troca de matéria-prima de primeiro uso pela de segundo.
Apenas duas capitais não têm leis proibindo a distribuição da sacola plástica. Qual o reflexo no estudo da MaxiQuim do alastramento dessas normas e como vê o futuro das sacolinhas tradicionais e da viabilidade econômica de sua reciclagem?
O uso de sacolas plásticas descartáveis tende a reduzir, no Brasil e no mundo. A proibição acelera o processo, mas a tendência de uso racionalizado da sacola veio pra ficar. No Brasil, isso já impacta de forma positiva o índice de reciclagem mecânica de polietilenos, pois a geração de resíduos provenientes de sacolas começa a diminuir. A reciclagem mecânica de sacolas plásticas é praticada no país. Muitas vezes o resíduo reciclado delas é reaproveitado como saco de lixo, mas, dependendo da sujidade, a reciclagem desse refugo pode tornar-se economicamente inviável.
Por que não se incentiva por aqui a incineração, para gerar energia de plásticos pós-consumo de reciclagem mecânica inviável, tal como ocorre na Europa?
Mesmo na Europa, a incineração não é hoje a melhor opção para estes materiais, e sim a reciclagem química. Ambas as soluções têm investimento alto, mas a reciclagem química é uma solução mais sustentável. A tendência na Europa é de crescimento da reciclagem química em detrimento da incineração. No Brasil não deve ser diferente, a expectativa é de que a reciclagem química possa ser implementada para gerar novos plásticos a partir da pirólise de resíduos e assim reduzir o impacto ambiental.
Qual a motivação para o reciclador produzir PCR de alto padrão de qualidade requerido por brand owners como os de cosméticos e higiene pessoal sem perder negócio para a acessível resina virgem?
O valor relativo do PCR de alto padrão de qualidade tende a crescer, ou seja, a rentabilidade do negócio de reciclagem vai aumentar. Afinal, os brand owners têm metas de uso de PCR que se impõem ao crescimento orgânico do mercado. O desafio é e será cada vez mais o fornecimento de matéria-prima condizente com a qualidade requerida nestes casos.
Como avalia o futuro de recicladores no Brasil dependentes apenas desta atividade diante da concorrência de transformadores e petroquímicas com braço na reciclagem de resíduos?
Recicladores cujo core business é reciclagem têm uma oportunidade de atuar em um mercado que só cresce, tanto em volume quanto em valor agregado. A escala do negócio vem aumentando e as empresas têm que se adaptar, através de tecnologia, capacitação de pessoal, profissionalização. Isso vem ocorrendo há alguns anos no Brasil; temos recicladores de maior porte do que grandes transformadores tradicionais. Para quem não consegue acompanhar o rápido desenvolvimento do setor, há oportunidades de parcerias, fusões e aquisições. Não vejo risco com a entrada de transformadores e petroquímicas neste negócio, só oportunidades.