5 anos a zero

Ainda falta muito para a Política Nacional de Resíduos Sólidos se firmar
Buzaglo: execução frustrante da logística reversa.

O Brasil tem firma reconhecida como um primor para formular leis cujo conteúdo arrebata pela belezura, mas a transposição para a realidade acaba em triste figura. Pelo andar da carruagem, caso o cumprimento ansiado permaneça nas condições notadas nesses seus cinco anos de vigência, a lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), tida como pepita da mais fina lavra da jurisprudência da sustentabilidade, periga entrar para as normas da legião da boa vontade -e olhe lá- do Direito Brasileiro. Esse destino de alta probabilidade para a PNRS desponta, ao lado do desinteresse da sociedade pela preservação da natureza, nesta entrevista do advogado Marcelo Buzaglo Dantas, jurista sumidade nº1 em Direito Ambiental.

Buzaglo: execução frustrante da logística reversa.
Buzaglo: execução frustrante da logística reversa.

PR – Qual o balanço de cinco anos de vigência da lei da PNRS?
Buzaglo – Encontramos em notícias publicadas pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) a afirmação de que o saldo da PNRS é extremamente positivo nesses cinco anos de implementação. Porém, infelizmente, a realidade não é bem essa. Diversos são os municípios que ainda não conseguiram extinguir os lixões a céu aberto. Em alguns Estados, apenas 10% dos municípios o fizeram. É muito pouco. Não é de se estranhar, assim, a anunciada prorrogação do prazo de eliminação dos lixões pelo Senado. Frustrada a meta de alcançar esse estágio em agosto de 2014, ela foi postergada em 1º de julho deste ano para 2018 e 2021,conforme as características de cada cidade. A mesma frustração estende-se aos instrumentos de execução previstos na lei, em particular quanto aos planos de logística reversa. Das cinco cadeias produtivas contempladas com especial atenção do MMA (embalagens plásticas de óleos lubrificantes; lâmpadas fluorescentes de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista; produtos eletroeletrônicos e seus componentes; embalagens em geral e resíduos de medicamentos e suas embalagens), somente duas já possuem acordos setoriais prevendo a implementação da logística reversa. Ou seja, menos de 50%.

PR – Por que o grosso dos municípios não cumpre a lei?
Buzaglo – A defesa deles se fundamenta no fato de que as ações requeridas pela PNRS demandam investimentos substanciais para a adequação dos processos em uso de destinação dos resíduos sólidos. Isso procede, mas não justifica o descumprimento da lei. Até porque esse investimento já era obrigação constitucional das prefeituras antes mesmo da PNRS. Não obstante a cobrança, embora lenta, vem sendo realizada. Diversos municípios, como se vêm em São Paulo, Alagoas e Piauí, enfrentam ações civis públicas, movidas pelo Ministério Público, a fim de garantir o encerramento dos lixões. Os setores de serviços e industrial decerto serão afetados pelas penalizações decorrentes dessas cobranças.

PR – A legislação ambiental brasileira é considerada severa e exemplar. Mas na transposição da doutrina à realidade, sobram sinais e queixas relativos à insuficiente efetividade na implantação das normas. Quais os problemas notados?
Buzaglo – Ainda que esparsa, podemos notar um padrão na legislação ambiental brasileira, em especial nas normas editadas em âmbito federal. Isso porque elas devem prever situações generalizadas, possibilitando sua aplicação aos mais diversos casos concretos. Contudo, devido às particularidades da matéria, a legislação ambiental federal acaba tratando de situações específicas que não conseguem refletir a realidade dos diferentes contextos de um país de dimensões continentais.

PR – O que dá errado na aplicação da norma?
Buzaglo – Em nome de uma pretensa “proteção mais ampla”, o ente federativo acaba por legislar acerca de matérias que poderiam estar a cargo dos legislativos estaduais ou municipais, mais aptos para lidar com peculiaridades regionais. Por causa disso, percebe-se a existência de pontos legislativos específicos que, por vezes, impedem, a execução de vários projetos capazes de beneficiar a municipalidade ou o Estado, como se nota em casos de licenciamento de empreendimentos mais visados, caso das indústrias de grande porte. Ainda que a municipalidade externe a vontade de desenvolver industrialmente uma zona, por meios como seu plano diretor, os processos de licenciamento continuarão atrelados às obrigações previstas na legislação ambiental federal.
Trata-se de obrigação corretíssima. Contudo, quando aplicada a frio a casos concretos, as generalizações perigam impedir o licenciamento dos empreendimentos por motivos que sequer deveriam se aplicar na área pretendida. A busca pelo Judiciário, em determinadas circunstâncias, passa a ser a única saída. Nesse sentido, a readequação pontual de algumas normas ambientais vigentes seria uma solução para se buscar a plena eficácia delas.

aterros
Aterros: cronograma de extinção descumprido.

PR – Como interpreta o desinteresse, patente no Brasil, pela preservação ambiental e o predomínio da cultura de reparação dos danos causados?
Buzaglo – A cultura da reparação do dano é herança que trazemos da responsabilidade civil. Por ela, quem causa dano a alguém é obrigado a repará-lo. Essa ideia funciona muito bem quando o que se pretende proteger são os direitos de cunho monetário. A lesão a tais direitos pode ser solucionada pela técnica da conversão pecuniária. Como se sabe, porém, não é essa a realidade predominante no Direito Ambiental. Ao tratarmos da proteção ao meio ambiente, a reparação monetária do dano causado não serve para reintegrar o ambiente degradado. Assim, para ser encarado como instrumento eficiente de tutela ambiental, o Direiro Ambiental deve vir sempre aliado a outras ferramentas que permitam se antecipar à ocorrência do dano. Por isso é vital a presença de normas capazes de incentivar a preservação ambiental e a prevenção do dano. Embora ainda não tenhamos atingido os melhores níveis da legislação internacional nesse sentido, estamos caminhando. Já há algumas iniciativas estaduais, mas faltam normas federais, tão abundantes em se tratando de punir. Por exemplo, infelizmente inexiste uma norma federal capaz de conceder os incentivos necessários à efetiva conservação da natureza. A lógica no Brasil deve mudar: do poluidor-pagador, temos que evoluir para o protetor-recebedor.

PR – A seu ver, não tem sido eficaz simplesmente punir quem não cumpre a legislação ambiental e a realidade recomenda valorizar e recompensar quem realiza serviços ambientais. Qual a razão dessa ineficiência?
Buzaglo – Na prática, deparamos por vezes com situações nas quais a degradação ambiental perpetrada não pode mais ser efetivamente recuperada. Ou ainda, diante de casos em que a eventual tentativa de recuperar a degradação pode mostrar-se mais danosa ao meio ambiente. Nessas circunstâncias, aliás recorrentes, os mecanismos punitivos de comando e controle, majoritariamente previstos na legislação ambiental, não se apresentam como instrumentos eficientes de proteção da natureza. Em grande parte da sua extensão, a recente crise hídrica evidenciou a ineficácia desses instrumentos punitivos, pois a falta de cuidado com os elementos hídricos e respectivos entornos sempre se apresentou como regra em nosso território. A presença de várias metrópoles nas imediações de importantes cursos d’água exemplificam essa situação. Em casos desse tipo mostra-se inviável – e até irracional – a tentativa de recuperação desses elementos por meio da demolição das edificações há tempos ali presentes. Nesse sentido, os incentivos pela preservação poderiam ser mais eficazes que os instrumentos punitivos. Afinal, uma garantia de retorno pela preservação das áreas ambientalmente sensíveis poderia incentivar a preservação por parte dos proprietários. Eles não arcariam com o ônus do esvaziamento econômico de parte da propriedade. Esses instrumentos de incentivo não visam refrear o desenvolvimento, mas aliá-lo à sustentabilidade.

PR – A legislação brasileira já não concede incentivos a quem colabora com a preservação do meio ambiente? O que falta, então?
Buzaglo – De fato, o Brasil vem implementando políticas de incentivo à conservação ambiental. Entretanto, a adoção de uma postura voltada de fato ao desenvolvimento sustentável requer a readequação da racionalidade de toda a sociedade. Mas isso só pode ser satisfatoriamente alcançado em longo prazo, requerendo a implementação de políticas voltadas à educação ambiental em todos os setores sociais. No âmbito das indústrias, o grande obstáculo à difusão das práticas preservacionistas é que muitos dirigentes ainda acreditam que a proteção do meio ambiente demanda custos exorbitantes e por isso não condizem com a busca pelo lucro, inerente a qualquer atividade empresarial. Entretanto, observa-se nas últimas décadas uma valorização das indústrias empenhadas na proteção ambiental em seus processos de produção. Assim, para a colaboração com a proteção ambiental se tornar prática difundida no o setor industrial, é vital as empresas perceberem ser possível alcançar um meio termo entre o desenvolvimento e preservação. E que essa busca pode evitar ônus à continuidade da atividade empresarial e reverter ainda em ganhos diretos para ela.

PR – Países como a Costa Rica adotam o pagamento por serviços ambientais (PSA). Como funciona esse mecanismo e como explica o desinteresse em transpô-lo para a realidade brasileira?
Buzaglo – De fato, a Costa Rica é exemplo de implementação satisfatória do que se espera de um sistema de pagamento por serviços ambientais. Os serviços que recebem o pagamento englobam sequestro de carbono, conservação da biodiversidade e proteção dos recursos hídricos. Os recursos para financiar o programa vêm principalmente do imposto incidente sobre o consumo de combustível no país. No Brasil de hoje, ainda que existam incentivos econômicos à preservação florestal, não há por ora um programa realmente institucionalizado e difundido a nível nacional que estabeleça remuneração aos proprietários pela conservação, reflorestamento ou facilitação à regeneração natural de suas terras.
Entretanto, alguns Estados já possuem regras próprias instituindo o PSA de acordo com as particularidades regionais. O Estado do Paraná publicou recente decreto regulamentando o PSA para os proprietários que preservam e auxiliam na conservação das florestas e da qualidade das águas nas bacias dos rios Miringuava, Piraquara e Iapó. Além do Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo possuem iniciativas semelhantes. Já há progressiva movimentação no sentido de se criar lei nacional disciplinando o tema. A regulamentação dessas ações beneficia as indústrias, pois o investimento em conservação ambiental pode ser convertido em lucro direto para a empresa e fortalece institucionalmente sua marca.

PR – No Brasil, as recicladoras de plástico sofrem em geral com a defasagem e a distância mantida dos equipamentos atualizados, boa parte importada e sem similar local. Os entraves para sua compra passam pela tributação, burocracia e ausência de crédito. Já que a contribuição da reciclagem à sustentabilidade é questão fechada, por que o poder público não proporcionando meios para facilitar o acesso a essa tecnologia vital para o país?
Buzaglo – A reciclagem tem apresentado crescimento considerável nos últimos anos. Entretanto, ainda existem obstáculos a se transpor para alcançarmos um nível satisfatório de reaproveitamento de resíduos, em especial na esfera do plástico, responsável por 20% do resíduo sólido urbano gerado no país. Nesse sentido, caso se constate defasagem altamente significativa entre a tecnologia nacional e a internacional e os entraves para sua importação sejam muito severos, caminhos alternativos poderão ser explorados. Um mecanismo altamente debatido é a possibilidade de intervenção do Estado na ordem econômica e financeira, a fim de se assegurar a defesa ambiental. Tal intervenção é respaldada pela Constituição (art. 170) e poderia ser legitimamente aplicada como instrumento para a promoção de condutas ambientalmente desejáveis. Segundo esse entendimento, iniciativas como a redução da carga tributária incidente sobre a importação desses produtos de ponta poderiam ser pensadas como possível meio de amenizar as barreiras à entrada dessa tecnologia no país, se comprovada expressiva melhora ambiental com os novos processos de reciclagem. Mas a efetivação de tais mecanismos de intervenção dependeriam de iniciativas legislativas (municipais, estaduais ou federais), de parlamentares e da própria sociedade. Além disso, eles não estariam imunes a críticas, podendo ser considerados indevida interferência direta do Estado na ordem econômica. •

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