Em ranking de 64 países, o Brasil pegou o 60º na edição 2023 do Anuário Mundial de Competitividade realizado pela entidade IMD. A melancólica colocação aflora das entrevistas de mais de 6.000 executivos com base num batalhão de indicadores socioeconômicos. Conforme noticiado, dois pontos ruinosos para a classificação do Brasil são os entrelaçados ambiente para negócios e legislação tributária. Na conjuntura atual, de consumo interno morno e altas importações de poliolefinas em superoferta mundial, transformadores são bombardeados pela concorrência desnivelada, nos grandes centros de consumo, com materiais e produtos acabados (flexíveis, p.ex) fabricados e remetidos da Zona Franca de Manaus (ZFM) à sombra de benefícios fiscais que compensam de sobra o frete a longa distância. Um deles é o crédito presumido do Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI). Em apenas quatro anos de vigência seus efeitos sobre a cadeia nacional do plástico provam-se lacerantes a ponto de já suscitarem pedidos do reexame desse incentivo clamados por representações como o Sindicato das Indústrias de Material Plástico no Estado do Rio Grande do Sul (Sinplast). Nesta entrevista, o advogado Eduardo Motta Pereira, consultor tributário e assessor do Sinplast, expõe o impacto causado no setor pelo crédito presumido de IPI e propostas de soluções para análise na pleiteada revisão da controvertida benesse.
Os desequilíbrios causados nacionalmente por materiais e produto transformados remetidos da Zona Franca de Manaus (ZFM), à sombra de incentivos fiscais imbatíveis, não são novidade. Por quais motivos somente agora representações nacionais e estaduais do setor plástico começam a contestar publicamente esta concorrência desigual em vigor há tantos anos?
A ZFM existe desde 1967, mas alguns fatos mais recentes contribuíram para o agravamento do desequilíbrio concorrencial. Em termos de conjuntura econômica, a superoferta internacional favoreceu a entrada de matérias-primas importadas, o que turbinou as empresas que tradicionalmente importam resinas plásticas, como do Polo Industrial de Manaus. Além disso, no âmbito tributário, houve uma ‘pequena grande’ mudança em 2019: a decisão do Supremo Tribunal Federal que liberou a utilização de um benefício não previsto em lei, o crédito presumido de IPI, o que faz uma enorme diferença em termos de competitividade.
Poderia explicar didaticamente o funcionamento e as vantagens fiscais para indústrias da Zona Franca proporcionadas pelo incentivo do crédito presumido do IPI?
Em suma, o crédito presumido funciona da seguinte forma: os fabricantes da ZFM vendem seus produtos com isenção de IPI, mas seus clientes possuem direito a crédito do imposto, como se estivesse destacado na nota fiscal de compra. Ou seja, o benefício permite que os adquirentes se creditem integralmente do imposto que seria devido, não fosse a isenção. Com isso, entre outras coisas, abriu-se caminho para a criação de operações triangulares envolvendo empresas instaladas na ZFM: a mercadoria sai dali não com destino ao cliente, mas para outra empresa do mesmo grupo localizada em outra região do país. Assim, o próprio fabricante de embalagens fica com o benefício, em vez do verdadeiro cliente.
Esta desoneração específica no crédito do IPI permite que matérias-primas e produtos transformados remetidos da Zona Franca sejam comercializados no Rio Grande do Sul a preços, em média, quanto por cento inferiores aos da concorrência local?
Falando apenas do crédito presumido de IPI e desconsiderando o coquetel de benefícios desfrutado pelas empresas na ZFM (Imposto de Importação, ICMS, Pis, Cofins, IRPJ), temos uma vantagem econômica de 15% nas embalagens flexíveis. Essa margem artificial de 15%, por si só, inviabiliza a produção de embalagens em diversas unidades da federação, por absoluta falta de competitividade. Porém, nossos estudos apontam que a vantagem econômica total pode chegar a quase 40%, em favor dos fabricantes de embalagens da ZFM, considerando todos os benefícios. Isso torna a situação insustentável, principalmente nos Estados que não possuem qualquer tipo de benefício fiscal de ICMS.
“A aprovação de uma lei resolveria o problema se fixasse o crédito presumido em percentual que não inviabilizasse o restante da produção nacional”
O Sinplast tem indicadores numéricos que demonstrem como e o quanto as vendas legais no Rio Grande do Sul de matérias-primas (compostos) e transformados remetidos da ZFM prejudicam a indústria transformadora gaúcha?
Não há muitos dados disponíveis, devido a certas peculiaridades da situação. A primeira dificuldade se refere aos efeitos indiretos dos benefícios fiscais aplicáveis às operações envolvendo matérias-primas. A matéria-prima importada através da ZFM acaba turbinando muitos concorrentes (dos transformadores de outros Estados) que lá não operam. Além disso, parte das entradas interestaduais de embalagens no RS (SP, RJ, MG) tem sua origem na ZFM, isto é, decorre de operações triangulares envolvendo estabelecimentos na área incentivada. Isso tudo dificulta a mensuração dos impactos, bem como o levantamento de informações.
Dos pontos de vista jurídico e tributário, quais as principais lacunas e deficiências no mecanismo do crédito presumido do IPI que justificam o pleito de revisão e reavaliação desse incentivo feito pelo Sinplast e outras representações do setor plástico?
Estamos falando de um benefício não previsto em qualquer texto constitucional, legal ou infralegal. Trata-se, portanto, de um inédito ‘benefício fiscal judicial’ criado pelo STF. Apesar do nosso respeito à decisão, não poderia ter sido criado um benefício fiscal por decisão judicial, sem amplo debate no Congresso Nacional. Ademais, o crédito presumido de IPI não beneficia diretamente os contribuintes instalados na ZFM, mas seus clientes, que são empresas que nunca investiram um centavo sequer naquela região.
Para corrigir os desequilíbrios gerados pelo incentivo do crédito presumido do IPI na ZFM o Sinplast propõe duas alternativas: zerar a alíquota de IPI , esvaziando assim o crédito presumido e encaminhar projeto de lei para instituir credito presumido não baseado na alíquota cheia do produto. Quais as vantagens e viabilidade de aprovação de cada alternativa?
A ausência de lei regulamentando o crédito presumido de IPI acabou por se mostrar prejudicial, pois, na ausência de critério legal, utiliza-se a alíquota ‘cheia’ do produto como parâmetro do creditamento (15% para embalagens flexíveis). Isso não ocorreria se houvesse disposição de lei sobre a matéria, estabelecendo determinado percentual de crédito nas entradas isentas. A exigência do STF é no sentido de que os adquirentes de produtos da ZFM tenham algum crédito nas compras isentas de IPI, mas não necessariamente o integral, como ocorre hoje. A aprovação de uma lei resolveria o problema se fixasse o crédito presumido em percentual razoável que não inviabilizasse o restante da produção nacional.
No que se refere à alternativa de redução das alíquotas, temos a seguinte lógica: considerando que hoje o crédito presumido de IPI se baseia na própria alíquota do produto, quanto menor esta, menor o benefício da ZFM. Uma eventual redução a zero das alíquotas de IPI das embalagens resultaria em ganho de competitividade para a indústria nacional como um todo, além de esvaziar o crédito presumido em questão.
Qual a possibilidade de reforçar a mensagem com apoio de representações do plástico de outros Estados dando cunho nacional à reivindicação?
Temos cumprido intensa agenda política, nos âmbitos estadual e nacional, junto a autoridades e entidades setoriais. Estamos começando a colher frutos em termos de adesões. Mesmo que o Rio Grande do Sul esteja liderando de alguma forma este processo, os efeitos colaterais da ZFM afetam toda a cadeia petroquímica nacional.
Qual o risco dessa reivindicação das representações do plástico gaúcho ser rejeitada pelo poder público por se tratar de pleito de uma indústria específica e não extensivo aos demais setores produtivos integrantes da ZFM?
Vemos pelo lado positivo: isso reforça nossa premissa, que é combater os efeitos colaterais da ZFM, e não a ZFM em si mesma. Para os setores em relação aos quais não haja problemas semelhantes ao do setor plástico, talvez não haja tanta necessidade de modificações. A menor amplitude do setor plástico pode reduzir eventuais resistências e facilitar a aprovação das medidas.
“O cenário é de risco de fechamento de fábricas transformadoras no país e transferência de operações para Manaus”
O STF permite que empresas de todo o Brasil tomem créditos de IPI ao comprarem insumos isentos saídos da ZFM. Há direito a este creditamento na entrada de insumos, matéria-prima e material de embalagem adquiridos junto à ZFM sob o regime de isenção. Empresas de qualquer setor situadas fora de Manaus que compram insumos vindos da ZFM se beneficiam dessa decisão. Diante disso, acha que a permissão do crédito torna a ZFM o melhor local do Brasil para uma transformadora de plástico se instalar? E mantido este quadro, a romaria atual de transformadores para Manaus vai aumentar a sobrevida dos concorrentes fora dali tende a piorar?
Infelizmente a resposta é sim a todas essas perguntas. A decisão do STF, relativa ao crédito presumido de IPI, é recente (2019). As empresas estão cada vez mais se atentando para as vantagens competitivas da ZFM. Vantagens artificiais, criadas por efeito de benefícios fiscais, mas que são concretas e bastante palpáveis, em termos de resultado. Além disso, as já referidas operações triangulares estão se ampliando e sofisticando. Isso tudo contribui para um cenário desanimador e perigoso, com risco de fechamento de fábricas e transferência de operações para a ZFM.
Além de isenção de IPI, as empresas instaladas em Manaus aproveitam outros benefícios fiscais como alíquotas diferenciadas de PIS e Cofins, restituição de 90,25% de ICMS, desconto de 75% no IRPJ, redução de Imposto de Importação na importação de insumos e descontos de IPTU. Com base neste rol de vantagens legais e consolidadas, apenas a reivindicada reavaliação do crédito presumido de IPI bastaria para nivelar a competitividade, no restante do país, entre produtos (matérias-primas e transformados) remetidos da ZFM e os concorrentes locais?
Uma boa solução para a questão do IPI não resolveria todo o problema, mas traria certo alívio ao setor, que passaria a apostar suas fichas na reforma tributária. A reforma é uma boa oportunidade para discussões mais amplas envolvendo o sistema de benefícios da ZFM.