Obra em progresso

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Contra os pessimistas e apesar dos percalços, da pandemia e informalidade à recessão e descaso do governo, o volume de plástico reciclado no Brasil está conseguindo ir em frente.Determinadas mudanças nos ares convencem os mais céticos de que, enfim, a reciclagem de plástico está se livrando do mofo acumulado no passado, quando era olhada como indústria mirrada, fadada ao atraso, aferrada a preço e seu produto era a versão polimérica do uísque paraguaio. Foto clicada hoje: dentro do permitido pela economia esburacada, o setor reciclador dá sinais de acordar para oportunidades inéditas para expandir seu negócio e tirar das costas a reputação de mero lixeiro do plástico. Convertidos ao desenvolvimento sustentável, brand owners (companhias donas de grandes marcas de bens de consumo) impõem o uso crescente de reciclado de melhor padrão em suas embalagens plásticas. Para não perder esse bonde, cada vez mais recicladores se abrem à gestão profissional e atualização tecnológica, enquanto petroquímicas e distribuidores de resinas entram no clima estendendo o braço na coleta, triagem e reciclagem grau premium.

Levantamento anual empreendido desde 2018 pela consultoria Maxiquim, a pedido da iniciativa Plano de Incentivo à Cadeia do Plástico (PICPlast), arredonda em 1,4 milhão de toneladas o volume de resíduos plásticos reciclados no país em 2020. Desse total, 1 milhão de toneladas cabem ao descarte pós-consumo e 386.000 a aparas industriais. Mesmo sob a primeira onda da covid-19, marcada por restrições sanitárias e carência de resina virgem, aquele total aferido em 2020 superou em 5,8% o de 2019. No embalo, a produção de resinas recicladas pós-consumo subiu então para 1,2 milhão de toneladas, das quais 884.000 originárias do descarte pós-consumo e 368.000 de refugo das linhas de transformação.

O peso da procura
No pente-fino da MaxiQuim, o índice nacional de reciclagem mecânica (única tecnologia de recuperação de resíduos plásticos em vigor no Brasil) das resinas pós-consumo foi estimado em 23,1% em 2020 contra 22,1% em 2019, último ano antes da pandemia. “A reciclagem mecânica tem grande potencial no país, viabilizado pela oferta, mas pesa, em especial, o impulso da demanda por resinas recuperadas para segundo uso”, julga Solange Stumpf, diretora da MaxiQuim e mentora das pesquisas anuais para o PICPlast. “A procura seguirá crescendo por conta das metas de sustentabilidade das empresas (brand owners), hoje muito orientadas para o aumento do conteúdo de reciclado em seus produtos acabados e embalagens”.

Do lado considerado mais crítico pela analista, o da oferta de resíduos pós-consumo, ela pressente melhoras no cenário a tiracolo do crescimento substancial de programas de logística reversa e da penetração de novas tecnologias de coleta, triagem e reciclagem. “Nos últimos anos, os preços relativos das resinas recicladas têm aumentado muito, o que indica maior valorização do material, ensejada pela demanda forte, e a situação econômica do Brasil também influi nesse quadro, pois a reciclagem figura entre determinados setores que sobressaem em momento difíceis como o atual”.

Rearranjo estrutural
No pano de fundo, o levantamento compilado pela MaxiQuim estima em 661 o quadro de empresas recicladoras de plástico na ativa em 2020, efetivo -7,7% abaixo do aferido dois anos antes. Uma frente ampla de analistas não vê demérito nesse declínio, dada a alta mortalidade de pessoas jurídicas de pequeno porte que dominam à larga o setor reciclador, à sombra da baixa visibilidade fiscal. Ocorre, porém, que comorbidades tipo modernização do aparato da Receita, regulamentação linha dura das instituições financeiras, rentabilidade da reciclagem infartada pelo oscilante suprimento de matéria-prima e preços das resinas virgens salgados e instabilizados pelo petróleo e dólar acuam indústrias recicladoras sem capital e qualificações operacionais suficientes para pelejar nos conformes tributários.
“De fato, a quantidade de recicladores diminuiu nos últimos anos no Brasil”, atesta Solange. “Não é um sinal de encolhimento do setor, mas de um movimento estrutural de competitividade, através de facetas como escala de produção, incremento de tecnologia, capacidade e gestão”. Para a pesquisadora, a indústria de reciclagem assemelha-se cada vez mais à transformação de plásticos, em particular no tocante à escala. “Isso decorre não só da exigência do mercado, mas da verticalização na reciclagem empreendida por muitos transformadores, em especial os de grande porte, e do braço estendido em artefatos plásticos por significativo número de recicladores”, ela atribui. No embalo, Solange ressalta que a pandemia não tolheu a expansão dos investimentos do setor em produção, modernização e até na reorganização dos fornecedores de resíduos. “O caminho a percorrer ainda é longo, mas não tem volta e muitos paradigmas vigentes no passado da reciclagem já foram quebrados”.

Apesar desses avanços e do encanto geral com a economia verde, rareiam as notícias de novos entrantes na reciclagem brasileira de plástico. O distanciamento dos empreendedores tem muito a ver com um poder público alheio a esse setor e que, por taxá-lo com mão pesada e critérios discutíveis, também explica a incidência de incursões no mercado paralelo por boa parte das recicladoras, sem falar na informalidade disseminada entre catadores, cooperativas e sucateiros. Praxe em países desenvolvidos para apoiar a sustentabilidade, a concessão de incentivos governamentais a indústrias recicladoras ainda não pegou no Brasil. A desculpa invariável é a da penúria de recursos oficiais para tais gastos, considerados não primordiais. Com isso, muitos gargalos e crateras seguem pendentes no setor. Afinal, o plástico reciclado no país ainda depende de uma cadeia de suprimentos inconstante e complexa, coalhada de intermediários e de problemas fiscais, ambientais e trabalhistas. Do seu lado, o governo não implanta a coleta seletiva de forma abrangente e eficaz nem investe ou apoia modelos alternativos de triagem de refugos. Também não provê crédito de imposto para os resíduos e cobra da cadeia recicladora impostos superiores aos delimitados para a resina virgem.

Visões destoantes
Mesmo enredada nesses cipoais, a reciclagem de plástico progride no Brasil, puxada em especial por brand owners com agressivas metas sustentáveis de consumo de resinas recuperadas para segundo uso. Nas entrelinhas, aliás, percebe-se uma situação surreal. Fabricantes de bens de consumo apregoam que o consumidor brasileiro anda atento à proteção ambiental e cobra das empresas que ele prestigia posicionamentos sustentáveis. Enquetes nos pontos de venda inundam a mídia glamourizando o apreço do público pelos três “Rs” da sustentabilidade (reduzir, reutilizar, reciclar), para combater o descarte incorreto. Ocorre, no entanto, que não se sabe de qualquer respondente de pesquisa de opinião que tenha se admitido desinformado, cético ou indiferente à defesa do meio ambiente. E sobram no cotidiano do comércio confirmações de que a esmagadora maioria da população, dominada por classes de baixa renda, escolaridade sofrível e compras movidas a preço, ignora o significado de termos essenciais para um entendimento básico da pauta ambiental, caso de biodegradação, reciclagem, fontes fósseis e renováveis, desenvolvimento sustentável etc etc. Em suma, há um fosso entre a conscientização que o consumidor padrão demonstra e a que os brand owners querem enxergar.

A adesão geral da sociedade à defesa da natureza e a constatação dos danos provocados pelas mudanças climáticas fazem crer que esse hiato cultural seja gradualmente encurtado. Uma das forças nessa direção, por sinal, acontece de forma pulverizada e descontrolada. Trata-se do alastramento de empresas privadas de todos os portes, sejam do setor industrial, financeiro ou de serviços, que implantam por sua conta medidas e políticas de cunho ambientalista. Assim, pululam a torto e a direito anúncios de práticas como patrocínios de coleta seletiva, programas de logística reversa, metas de neutralidade de carbono e, ponto de preocupação para o setor plástico dada a falta de fundamento técnico, explodem os casos de empresas banindo produtos plásticos de uso único, como descartáveis em geral e embalagens tipo sacolas de saída de caixa. Tais vetos acendem um sinal vermelho na cadeia plástica. Afinal, cruzados os dados de 2020, produtos de uso único responderam por 960.000 do total de 1,4 milhão de toneladas de resíduos consumidos na reciclagem de plástico.

Menos é mais
Entre os artefatos mais expostos a essa linha de tiro, despontam as embalagens flexíveis, em especial as de composição multimaterial para prover as necessárias características de barreira. Flexíveis pós-consumo são resíduos bem menos valorizados que plásticos rígidos pelos catadores e sucateiros e a significativa incidência de contaminantes complica a destinação desses resíduos de filmes para a reciclagem mecânica. Além disso, embalagens flexíveis multimaterial agrupam polímeros quimicamente incompatíveis entre si, exigindo onerosa e trabalhosa separação deles antes da etapa da reciclagem.

O imbróglio deu à luz duas correntes opostas em tramitação no mundo. De um lado, petroquímicas fornecedoras de polietileno (PE), a resina mais consumida em embalagens flexíveis, lançam-se com sofreguidão atrás de soluções para substituir estruturas multimaterial por mono, avanço já visivel em stand up pouches laminados contendo apenas PE para acondicionar produtos tipo grãos, farinhas, balas, amaciantes ou detergentes em pó, dependentes de impermeabilidade ao vapor d’água e cuja preservação dispensa barreiras à gordura e ao oxigênio. Do outro lado, diversos brand owners da indústria alimentícia, caso de confeitos, movimentam-se à procura de materiais de reciclagem simples e capazes de desbancar flexíveis multimaterial.

Evolução a galope
Das 884.000 toneladas de resinas pós-consumo recicladas no Brasil em 2020, o topo do pódio, com participação fixada em 41,4% no estudo da MaxiQuim, permanece cativo de PET. No seu rastro, os índices mais relevantes couberam a polietileno de alta densidade (PEAD), com 19%; polipropileno (PP), com 16,7% e polietilenos de baixa densidade e linear (PEBD/PEBDL), com 16,1%. Frascos e garrafas em geral utilizaram as 366.000 toneladas de PET reciclado em 2020. Projeções da Associação Brasileira da Indústria do PET (Abipet) situam em 310.000 toneladas o volume reciclado do poliéster em 2019-segundo a MaxiQuim, 42% do total de plásticos pós-consumo recuperado no período. As referidas 310.000 toneladas, retoma o fio a Abipet, correspondem a 55% das 556.000 toneladas de embalagens então descartadas de PET virgem, tendo à frente garrafas de água mineral e refrigerantes. A entidade arredonda em 400.000 t/a a atual capacidade instalada brasileira para reciclar PET.

Amostra da evolução a galope: em 2009, menos de 10% do PET reciclado voltava à condição de embalagem contra cerca de 25% hoje em dia. A propósito, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já homologou mais de 10 empresas para produzirem PET reciclado grau alimentício, única resina recuperada aprovada pelo órgão para contato direto com alimentos. Em 2019, distingue a Abipet, este segmento consumiu 17% do PET reciclado no país.

Bons fluidos
Os alentos ao plástico pós-consumo reciclado (PCR) no Brasil também transparecem da adesão de indústrias médias e grandes do setor à produtividade proporcionada pela triagem automatizada de resíduos, através de sensores eletrônicos de alta resolução, abolindo a obsoleta separação manual do refugo encaminhado à reciclagem. “A automação viabiliza a triagem em grande escala e no nível de eficiência mais compatível com a necessidade cobrada pelo mercado daqui para a frente”, enfatiza Solange Stumpf. “Trata-se de uma etapa muito importante na cadeia recicladora. Sua defasagem no Brasil já foi muito mais crítica e a alternativa da supressão da seleção manual deve fortalecer a oferta de resíduo em condições satisfatórias para a reciclagem”.

Outras boas novas: os municípios brasileiros devem começar a cobrar, a partir deste ano, o Serviço Público de Manejo de Resíduos Sólidos Urbanos (SMRSU), conhecido como Taxa do Lixo, atendendo a determinação do Marco Legal do Saneamento Básico, aprovado pelo Congresso em 2020. Por sinal, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) divulgou norma alertando que os municípios que não criarem legislação para a cobrança ficarão sujeitos às sanções da Lei de Responsabilidade Fiscal. Essa tarifa dá a largada para diluir um crônico entrave na cadeia brasileira de PCR: o abastecimento irregular, em volume e qualidade, de resíduos pós-consumo. Na mesma trilha, o Marco do Saneamento, delimitou o encerramento até 2024 de todos os lixões em funcionamento no país (estimados em torno de 2.600 em 2021) com descontaminação dos espaços onde foram fechados, evitando assim danos ao meio ambiente e saúde pública e desperdício de plástico pós-consumo passível de reaproveitamento pela sua reciclagem. Mais de 60% das 46 milhões toneladas de resíduos sólidos urbanos coletados em 2020 no país seguiu para disposição adequada em aterros sanitários, enquanto áreas de destinação indevida, inclusos lixões e aterros controlados em operação, responderam pelo ainda alentado percentual restante na mira do marco regulatório.

Uma muralha entre o passado e futuro da reciclagem de plástico no país está sendo erguida pela Braskem. Produtora local de PP e PE virgens, esta petroquímica tem enriquecido seu mostruário de soluções sustentáveis (entre eles o PE Verde, derivado do etanol da cana-de-açúcar) e encabeçado um esforço setorial para abrir caminho no mercado interno para reciclados de maior valor agregado, fornecimento designado de início pela empresa a parceiros recicladores de ponta. A ofensiva engrossa em 2022 com a entrada em campo da planta recicladora top de linha da Braskem, apta a recuperar 14.000 t/a de embalagens rígidas pós-consumo de PP e PE. Montada com requintes como a triagem automatizada de rejeitos, a fábrica foi instalada na sede em Indaiatuba (SP) da parceira Valoren, empresa centrada na coleta e recuperação de resíduos plásticos. O ingresso da Braskem no negócio de reciclagem reflete uma tendência iniciada há anos na Europa, interpreta a diretora da MaxiQuim, sob a expectativa de crescimento da demanda de polímeros para segundo uso pautada na sustentabilidade e na corresponsabilidade dos segmentos integrantes da cadeia plástica quanto à destinação correta dos resíduos oriundos de seus produtos. “Este movimento vem ajudando muito a mudar o conceito da resina recuperada, com a introdução de grades rastreáveis de alto padrão”, assinala Solange. “Tudo isso converge para valorizar o produto e, por extensão, ampliar a rentabilidade do negócio da reciclagem”.

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