Dez anos atrás, Paulo Cavalcanti cintilava no empresariado nacional, à frente de um conglomerado baiano onde constava a Sasil, então uma das maiores distribuidoras de termoplásticos. Mas em agosto de 2011, Cavalcanti viu-se no olho de um furacão. Uma devassa do governo levou à deflagração da Operação Alquimia que o culpava de fraude fiscal da ordem de R$ 1 bilhão. A ação envolveu, além de constrangimento midiático do empreendedor, 37 prisões temporárias, 88 conduções coercitivas e 150 mandados de busca e apreensão. Entre os bens arrestados constava uma ilha do empresário na Baía de Todos os Santos. Baixada a poeira, veio à luz uma batelada de ilegitimidades cometidas pelos órgãos públicos e lacunas inadmissíveis no caso, como a ausência de investigação fiscal contra Cavalcanti. Por causa do bloqueio dos ativos do grupo, a Sasil fechou as portas. Livre em definitivo das acusações em 2018 e com os bens restituídos, Cavalcanti, inconformado com o injusto pesadelo que viveu, formou-se em Direito, abriu escritório de advocacia e virou ferrenho ativista em defesa da função social da empresa. Nesta entrevista, ele enfatiza que sua extenuante vitória judicial deve servir de referência para empresas formais e inadimplentes não se curvarem a excessos do poder público cometidos à margem da lei.
Em 2011, foi ativada a Operação Alquimia, na qual a Receita Federal, Polícia Federal e o Ministério Público Federal indiciaram o senhor como dono da distribuidora Sasil. Depois de muito contestar, conseguiu no Superior Tribunal de Justiça o trancamento da investigação, mostrando as ilegalidades cometidas, e sequer foi denunciado. Como avalia este desfecho?
A Operação Alquimia foi mais uma das diversas ações desastrosas realizadas conjuntamente por nossas instituições públicas. Além de ilegal, foi um episódio que, infelizmente, já se tornou habitual no país. O inquérito policial no qual estive envolvido (8231-27.2006.8.09.0051), apesar de já ter sua decisão transitada em julgado e sem ninguém denunciado, já demonstra por si o total absurdo, a morosidade do nosso sistema de justiça e a falta de reação da classe produtiva brasileira, quase sempre permissiva com esta prática que classifico como autocanibalismo estatal. É o próprio Estado e seus servidores destruindo suas galinhas de ovos de ouro, tratando empresas formais, legalmente constituídas, como meras organizações criminosas.
Trata-se de um modus operandi que se esconde atrás de uma cortina de fumaça – a da presunção da verdade e legalidade da qual gozam o Ministério Público, a Polícia Federal e a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, além de seus entes similares nos Estados e municípios. É uma causa que ganhamos e que vai estimular decisões semelhantes em benefício dos empreendedores.
Por que o Judiciário tem se inclinado por criminalizar a dívida declarada por empresas, sobretudo em relação ao ICMS?
O Estado quer arrecadar a todo custo. Para isso, utiliza-se do direito penal como órgão cobrador e de coerção contra o cidadão. Obtive uma vitória também nesse sentido, depois da Operação Alquimia. Foi o processo 09044553020178240038, movido contra o Ministério Público de Santa Catarina. Todos sabemos que esta matéria não tem respaldo legal. Mas de que forma os empresários podem se defender? É mais um episódio de abuso de autoridade. Já a cultura de demonização e criminalização do empreendimento e do lucro provoca um linchamento não só das empresas como das pessoas físicas que são sócias ou trabalham nelas. É uma das mais perversas fakes news criadas pelo Estado brasileiro. A destruição da reputação das pessoas jurídicas e físicas é covarde e precisa urgentemente ser combatida.
O STF autoriza a criminalização do devedor contumaz e doloso. Essa classificação tem amparo na jurisprudência brasileira?
A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional cria, não fundamenta, e encontra espaço no Poder Judiciário. Diante disso, fica quase impossível a defesa do empresário. E isso é muito injusto. Cria uma relação de carência financeira (a chamada hipossuficiência) do cidadão comum contra o aparelhamento estatal. Precisamos com urgência que o Estado pague pelos seus abusos e o servidor que errou também seja devidamente punido, como todo cidadão brasileiro. Ser desonesto, imprudente, negligente ou imperito é inerente ao ser humano e não ao cargo que ocupa ou à profissão que exerce, seja empresário, médico, advogado, juiz, procurador ou motorista; errou tem que pagar.
Qual a diferença entre quem sonega e quem declara dever imposto, por não ter como saldar o débito em condições economicamente viáveis para sobrevida do seu negócio, como tanto se tem visto desde o início da pandemia?
Sonegação fiscal é crime sujeito a pena e multa, conforme previsto no código tributário. Com certeza absoluta, todo empresário formal, consciente de sua atuação, é contra a sonegação e a concorrência desleal. Precisamos deixar isso bem claro. Diante disso, o que pretendemos é conscientizar a sociedade civil e as instituições públicas de que a pessoa jurídica formalmente estabelecida não pode ser vista como organização criminosa. A inadimplência da sua dívida fiscal reconhecida e lançada nos livros fiscais não é crime, e isso também está bastante claro em nossa legislação. Por isso, a intenção de fraudar tem de ser provada. A generalização fere direitos constitucionais, é injusta e falha quando destrói a fonte de produção de riqueza, de geração de empregos e tributos, elementos essenciais para a manutenção até mesmo do Estado.
O abuso de autoridade pública com a clara intenção de arrecadar é crime e incoerente com os programas de reparcelamento de dívidas fiscais promovidos pelo Estado brasileiro, como os Refis. Está sendo comum, por parte das Procuradorias das Fazendas Nacional e Estaduais, a utilização do que chamam de “Grupos Especiais de Combate à Sonegação” para atuarem de forma abusiva, criando suas versões acompanhadas de ações midiáticas para justificar perante a opinião pública todas as suas ilegalidades. Infelizmente, está se tornando comum atacar injustamente pessoas jurídicas e físicas, destruir reputações e, mais grave ainda, matando as atividades produtivas. Trata-se de uma prática que constitui uma das mais covardes fake news que a classe produtiva pode sofrer. São as instituições públicas – que deveriam proteger os negócios e os cidadãos – gerando um momento de terrível insegurança jurídica como o que estamos vivendo no Brasil.
Qual o trabalho que o senhor vem desenvolvendo para extirpar da jurisprudência a incabível criminalização da empresa com dívida declarada?
O momento pede conscientização e participação de todos contra a banalização dos nossos direitos constitucionais. É com o engajamento dos cidadãos que conquistaremos um Estado cumpridor de suas obrigações sociais. Se faz necessária uma imediata reação e é isso que estou fazendo. Estou me doando como ativista da função social da empresa, com atuação como vice-presidente e coordenador do Núcleo Jurídico da Associação Comercial da Bahia, a partir da Fundação Paulo Cavalcanti, em iniciativas como o Certificado da Gestão Consciente da Função Social da Empresa (CGESCON) e a Via Cidadã, um movimento suprapartidário, sem fins lucrativos e não governamental. Ele busca promover uma mudança cultural para engajar a sociedade civil organizada a participar da gestão pública. Vivemos num país com a maioria dos trabalhadores em situação de informalidade, com a mais complexa e elevada carga tributária do mundo, obrigando a empresa formal a gastar 1.500 horas por ano para cumprir suas obrigações com o fisco. Mesmo assim, assistimos a classe empresarial permitindo e aceitando ser tratada como se fosse marginal. Chega! •