Apesar de fiascos do naipe dos seguidos adiamentos da decisão de fechar os lixões, efeito de manobras nos plenários de Brasília, o legislador da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) não deve ser olhado como um caso perdido de alguém sem noção da vida real, pondera o jurista Marcelo Buzaglo Dantas, luminar da proa do Direito Ambiental no país. O x da questão, ele evidencia na entrevista a seguir, é o fosso intocado em oito anos de vigência da lei federal (12.305/2010) da PNRS e que separa o projeto da obra das ferramentas que garantam sua implantação na prática. Em decorrência, deixa claro o advogado catarinense, a norma da PNRS hoje periga alinhar-se entre aquelas leis que, por melhor que sejam urdidas, simplesmente não pegam, não convencem a sociedade. A expectativa de Buzaglo é que o renovado Legislativo ponha enfim a mão na massa e trace as decisões pendentes a partir dos resultados da revisão da lei da PNRS, concluída em agosto último, mas sem conclusões divulgadas até o fechamento desta edição.
A menos que o governo Bolsonaro adote outra postura, prevalece o entendimento de que o prazo para término dos lixões, determinado pela lei da PNRS, será protelado – pela terceira vez – para 2021. Como enxerga os efeitos desses sucessivos adiamentos sobre a credibilidade da norma?
Um dos principais objetivos da PNRS, para não dizer o mais ambicioso deles, foi o estabelecimento de prazos para o encerramento dos lixões.
Ambicioso porque, apesar de não se olvidar da imprescindibilidade do encerramento dos lixões, é fato incontroverso que o prazo de quatro anos estabelecido pela lei se mostrava desarrazoado, em especial à luz da realidade de maior parte dos municípios brasileiros.
Conforme se nota de dados obtidos no Observatório dos Lixões (www.lixoes.cnm.org.br), plataforma criada pela Confederação Nacional de Municípios, de um total de 5.570, cerca de 1.104 sequer possuem informações acerca do modo de disposição de seu lixo. Ou seja, se nem mesmo há um diagnóstico preciso e atualizado da forma de disposição dos resíduos pelos municípios, como acreditar que uma problemática tão complexa como esta seria resolvida em um espaço de tempo tão curto como o de quatro anos?
Isso é uma justificativa para os contínuos adiamentos?
É fato que não podemos aceitar que os prazos sejam prorrogados para sempre. No entanto, sem um diagnóstico preciso sobre a realidade, é praticamente impossível definir o prazo razoável para atendimento à legislação. Como se sabe, a criação de uma política pública vai muito além do estabelecimento de obrigações e penalidades. É preciso criar medidas estruturais que definam, a partir de um diagnóstico da realidade, as soluções a serem adotadas. Por essa razão, entendo, sim, que devemos pensar em prazos mais razoáveis para encerramento dos lixões. Acredito até que esta será a postura do novo governo, como já sinalizou o presidente eleito, quando era o deputado relator da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável no Congresso Nacional. Contudo, tais prazos devem ser revistos junto com soluções sistêmicas e eficazes, que ataquem os problemas econômicos, regulatórios e administrativos que inviabilizam o encerramento dos lixões pelos municípios, sob pena de mais uma vez nos valermos de medidas meramente paliativas.
Houve precipitação do legislador ao regulamentar o prazo para o fim dos lixões sem atentar primeiro para o caixa deficitário do poder público, para a ausência de mínima qualificação na maior parte dos municípios para o manuseio do lixo, cuja geração segue crescendo, e para a falta de infraestrutura para viabilizar etapas como a coleta seletiva Ou seja, o legislador colocou o carro na frente dos bois?
Não sei se eu chamaria de precipitação. A PNRS tramitou por mais de 20 anos no Congresso até se chegar a uma redação que buscasse conciliar todos os interesses envolvidos; é uma das poucas políticas públicas no mundo a considerar as variáveis social, cultural, econômica, tecnológica e ambiental na gestão de resíduos sólidos e dos rejeitos. A meu ver, o problema é outro. O legislador não atentou que, para a consecução de todos os instrumentos criados, seria necessário aparelhar os órgãos públicos municipais, o que demandaria tempo e investimentos. Para a criação de uma política pública bem estruturada não basta estabelecer os instrumentos, é preciso considerar, dentro da realidade, quais as medidas a adotar para se alcançar uma solução definitiva. Encerrar lixões perpassa não apenas por questões políticas e econômicas, mas questões afeitas ao planejamento e infraestrutura de um município. Em um país tão burocrático e com realidades tão díspares como o Brasil, não é uma lei ampla e irrestrita, aplicada de cima para baixo, que solucionará toda a complexa questão dos lixões, muito menos no reduzido prazo de quatro anos. Por essa razão, o simples aditamento do prazo também não irá resolver.
No I Mundo, os defensores da economia circular, caso do parlamento da Comunidade Europeia, consideram um dos grandes desafios para o combate da poluição ambiental o descompasso entre as condições disponíveis nos países desenvolvidos e emergentes. Como o Direito Ambiental do mundo desenvolvido decerto inspirou a lei da PNRS, o confronto dessa doutrina com a nossa dura realidade mostra uma visão de gabinete do legislador da PNRS?
Nos países desenvolvidos, muito tem se discutido acerca da aplicação da economia circular na temática dos resíduos sólidos. Analisa-se a possibilidade de aplicação de um modelo alternativo de produção e consumo, de uma nova estratégia de crescimento que permita o desacoplamento do uso dos recursos naturais da expansão econômica. Diante do esgotamento dos recursos naturais, os precursores da economia circular da Comunidade Europeia defendem que a política de resíduos sólidos deve ser pensada à luz de três elementos chave: (i) redução absoluta de insumo de recursos, devido ao limite da entropia; (ii) modificações da ordem econômica, em especial repensando a questão de consumo; e (iii) equilíbrio entre dimensões de sustentabilidade socioambiental.
Um exemplo de país que vem discutindo essa nova forma de ver as políticas de resíduos sólidos é a Holanda. Ali foi criado um sistema econômico que considera a reutilização de produtos e materiais e a conservação dos recursos naturais como ponto de partida. Segundo os holandeses, busca-se assim valor para as pessoas, natureza e economia em cada parte do sistema.
Pois bem. Apesar de a PNRS ter se baseado, num primeiro momento, nas políticas europeias, e, nesse viés, a economia circular vir despontado naquele continente com poder de influir na revisão em curso das diretrizes sobre resíduos sólidos, tal influência deve ser vista com cautela. A própria Europa apresenta significativas discrepâncias em seu território. De fato, na maior parte do continente, a redução dos aterros sanitários veio junto com um aumento maciço dos incineradores e do tráfico de lixos para países como os africanos, o que não resolveu a questão.
Como fica a PNRS nesse contexto?
Acredito que a saída não seja “copiarmos” esse novo modelo, mesmo porque, como se sabe, em matéria de políticas públicas não há “soluções mágicas”, mas, sim, de pensarmos uma PNRS que também considere questões de produção e de consumo. Ou seja, que a revisão da PNRS seja realizada para abandonarmos a ideia de uma política de fim de tubo e passarmos a adotar uma política do “berço ao berço”, preconizada pela economia circular.
Qual o risco de, por alheamento das condições da realidade local, caso dos lixões, penúria de verbas, educação e infraestrutura, a lei da PNRS acabar incorporada ao rol das leis brasileiras que não pegam?
De fato, apesar dos excelentes propósitos da norma, a verdade é que, por variadas razões, “ela ainda não vingou”, para usar a expressão típica do jargão popular. Apesar de avanços aqui e acolá, representados pela celebração de alguns densos acordos setoriais, o fato é que a implementação da lei da PNRS ainda carece de efetividade, seja no que se refere à destinação ambientalmente adequada, coleta seletiva, logística reversa etc. Daí porque, mais do que oportuna se revela a revisão proposta pelo Ministério do Meio Ambiente, para que não se trate de mais uma lei que não pega. Para isso, no entanto, temos que ficar atentos para que a revisão seja realmente eficaz e ponha fim às inúmeras celeumas que sua publicação trouxe. É o que se espera do novo governo.
Há mais de duas décadas, grandes empresas privadas mobilizam-se em catequese ambiental da população com resultados frustrantes em ações para disseminar o descarte correto de refugo pós-consumo. Como fica a sustentação desse trabalho de conscientização se o governo não faz a sua parte, como prova o descumprimento da decisão de findar com os lixões?
Realmente, nota-se, na prática, “dois pesos e duas medidas”. Ao passo que o governo concede novos e sucessivos prazos para o poder público se adaptar à PNRS, essa tolerância não se aplica ao setor privado. Este se vê cada dia mais pressionado pelos órgãos ambientais, e, nos piores casos, até mesmo pelo Ministério Público, que tem se posicionado de maneira muito dura no que tange à necessidade da efetiva implementação da PNRS, conforme se nota pelo significativo aumento dos procedimentos investigatórios e até mesmo da propositura de ações civis públicas em face de empresas e de associações. No entanto, a resolução da questão de resíduos sólidos, em especial de responsabilidade pós-consumo, passa por outras questões muito mais complexas e dependentes da integração entre diferentes esferas do governo, múltiplas instituições, diferentes ações e instrumentos. Isso sem falar que ainda deverá contar com a participação popular, que, como se sabe, é o ponto chave para a consecução do sistema de logística reversa de diversos tipos de resíduos sólidos. Por essa razão, acredita-se, cada vez mais, que a revisão da PNRS seja a oportunidade ideal para definir quais serão os papeis de cada um na correta gestão dos resíduos sólidos, em especial dos consumidores na logística reversa, pois é fato que não há como se transferir para o setor privado a responsabilidade pela conscientização ambiental da população.
Ainda sobre essa catequese ambiental a cargo das grandes empresas privadas, o fato de a população ser cliente delas as impede de defender clara e abertamente a penalização – existente na lei – de quem comete o descarte incorreto. A seu ver, o governo deveria ao menos alertar a sociedade para a existência de penalidades para esses infratores, ajudando por esta via a iniciativa privada em seu trabalho de conscientização? Afinal, não só a população desconhece essas multas como o poder público em regra faz vista grossa ao deparar com tais infrações.
Sim. Uma questão que continua adormecida no Brasil é a educação ambiental, prevista na Constituição (art. 225, §1º, VI) e regulamentada em lei federal (Lei n. 9.795/99). Trata-se de ferramenta que, se bem aplicada, pode contribuir em muito para a melhor implementação da PNRS.
Desse modo, o governo não apenas tem que criar políticas públicas de conscientização e de educação ambiental para toda a população, como ocorre em diversos outros países do mundo, a exemplo do Japão, como tem que deixar claro na revisão da PNRS qual é o papel de cada um dos setores na correta gestão dos resíduos sólidos.
É fato incontroverso que a PNRS cobriu uma enorme lacuna da legislação pátria na problemática de resíduos sólidos, assunto tão importante nos dias atuais. Contudo, muito ainda há que se discutir sobre a sua aplicabilidade no Brasil, em especial no que se refere às obrigações de implantação de sistemas de logística reversa e de responsabilidade pela má gestão dos resíduos sólidos (disposição inadequada).•